Especialistas defendem inventário de bens coloniais nas instituições portuguesas
A problemática dos objectos de arte africanos nos museus portugueses não tem uma solução global e especialistas defendem, como primeiro passo, a realização de um inventário, atendendo a que “cada caso é um caso”, à luz dos novos contextos científicos.
O especialista português em colonialismo Sousa Ribeiro, em entrevista à agência Lusa, no final de 2018, considerou “urgente” a realização de um inventário dos bens coloniais existentes nos museus portugueses e propôs uma restituição dos que foram “pilhados”.
“Os museus nacionais têm de fazer, à semelhança do que outros estão a fazer na Europa, um trabalho exaustivo de levantamento desses bens coloniais e da forma como estes chegaram às suas mãos. Depois, não têm de, necessariamente, ser devolvidos, mas tem de se iniciar com a outra parte uma negociação” sobre o destino a dar-lhes, defendeu.
Na opinião do professor catedrático de Coimbra, “não há uma solução genérica para a restituição dos bens. Cada caso é um caso”, e o trabalho de restituição pode começar pelos “casos em que há uma reivindicação expressa de devolução do país em questão”.
Sousa Ribeiro alertou para o facto de “muitos desses objectos que se transformaram em peças de arte”, nos museus europeus, terem “um valor simbólico muito forte”. O especialista destaca, assim, sobretudo objectos usados em práticas religiosas ou em rituais colectivos.
O investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra António Pinto Ribeiro expôs igualmente a problemática da descolonização dos museus, numa conferência em Paris, no final de 2018, entretanto publicada em livro pela Fundação Calouste Gulbenkian - Paris.
Para Pinto Ribeiro, em Portugal há o “problema gravíssimo” de não haver listagens das obras de arte que podem ser reclamadas pelas ex-colónias.
“Em Portugal, não há listagens nem em relação aos museus, nem aos arquivos. Muitos destes objectos estão nas reservas, nem sequer estão expostos. Podem ser 10 mil, 50 mil ou 80 mil. Os próprios directores dos museus não sabem”, afirmou o ex-curador da Fundação Gulbenkian, em declarações à agência Lusa.
Pinto Ribeiro expôs os seus argumentos na capital francesa, exactamente no dia em que foram parcialmente conhecidas as conclusões do relatório (22 de novembro de 2018), pedido pelo Presidente de França, Emmanuel Macron, sobre a restituição de colecções de arte africana existentes em França.
Para Pinto Ribeiro este processo, a começar na inventariação, deverá ser “uma tarefa prioritária” dos próximos governos.
A historiadora Isabel Castro Henriques disse também que todas as situações têm de ser vistas “caso a caso e tem de haver um entendimento com os países aos quais eles pertencem”.
Estes três investigadores defenderam a devolução de bens resultantes de “roubo ou pilhagens”, tendo Castro Henriques lembrado que muitos objectos de arte foram um pagamento por bens portugueses que as sociedades africanas desejavam ou até ofertas.
“Há um problema de restituição de extrema complexidade que não se resolve com chavões generalistas”, é “preciso ser estudado caso a caso” e “depende muito de negociações que haja a fazer entre as partes envolvidas”, disse Sousa Ribeiro.
O processo de restituição, a acontecer, implica o “reconhecimento das potências europeias de que na verdade muitos dos objectos que têm nos seus museus foram trazidos ilicitamente dos territórios e subtraídos a populações que não foram tidas nem achadas nesse processo”, argumentou Sousa Ribeiro.
“A questão da memória colonial, não se coloca apenas nos países colonizadores mas também nos países colonizados, que tiveram, no caso português, sobretudo Angola e Moçambique, mas também Guiné-Bissau, um período pós colonial bastante conturbado”, acrescentou o especialista da Universidade de Coimbra.
Para António Pinto Ribeiro, a devolução deve ser feita de forma ordenada. “As peças devem ser reclamadas pelos Estados, não pessoas particulares. Há que ver os critérios da legitimidade de como as obras chegaram à Europa.
É preciso analisar se uma determinada peça faz parte do património essencial de um país ou de uma tribo. E há ainda a questão dos arquivos coloniais. Devem ser dados os originais ou cópias digitalizadas?”, questionou o investigador português.
Pinto Ribeiro considerou que “ou os museus são pós-colonialistas ou não existem”, dando exemplo do museu etnológico francês Quai Branly, conhecido pela sua grande colecção de peças provenientes de África, Ásia e Américas, que definiu como “anestesiante” e representante da relação de França com “um certo colonialismo”.
No lado oposto, colocou o novo Museu Africano, entretanto inaugurado em Bruxelas, apontado como um “bom exemplo”, pois conta “a sua história como museu colonial”, contextualizando os objectos.
Em março do ano passado, museólogos e investigadores reunidos no seminário “Descolonizar os Museus: isto, na prática...?”, organizado pela Acesso Cultura no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, defenderam a revisão do discurso e o refazer de colecções nos museus portugueses, tendo em conta o passado colonial português, a debater “todos os dias, sem ressentimentos”.
Na altura, o presidente do Conselho Internacional de Museus - Europa (ICOM-Europa), Luís Raposo, falou na necessidade de “rever discursos museográficos, refazer colecções, e constituir colecções que falem no tema da escravatura, ampliando ainda abordagens com a intervenção de comunidades com sensibilidades diferentes, para uma maior democratização destes espaços”.
Sobre a restituição de peças aos países de origem, Raposo considerou que “não é apenas uma questão técnica, mas também se esse sentimento de pertença é legitimo ou não, porque muitos dos objectos não têm a mesma simbologia”.
No seminário participou igualmente a actual deputada Joacine Katar Moreira, activista e investigadora de estudos africanos, que levou a proposta de identificação e restituição de bens ao parlamento, em Janeiro.
No seminário, Katar Moreira falou sobre a invisibilidade do tema da escravatura nas escolas: “Oficialmente, ninguém nos orienta relativamente a esta área. Houve um investimento na história da epopeia colonial, que é destacada como uma época áurea, de heróis, de uma nação valente, e a escravatura não é referida nas escolas, e muito menos a história da resistência e da insubmissão”, apontou.
O director do Museu Nacional de Etnologia, Paulo Costa, que também participou no encontro, disse então à Lusa que a questão diz respeito a todos os museus nacionais, municipais e às universidades, que possuem colecções ou objectos trazidos das antigas colónias portuguesas, assim como a inúmeras colecções privadas, que envolvem igualmente diferentes instituições.
“Desde os anos 1970 que existe legislação, nomeadamente uma convenção da UNESCO que Portugal ratificou, abrangendo a restituição de bens ilegalmente retirados de outros países”, afirmou à Lusa, na altura.
O antropólogo defendeu a existência dos museus de etnologia como espaços culturais “que mostram diferentes culturas e formas de viver, promovendo o diálogo e a convivência multicultural”.
“Foi nesse espírito que o museu foi criado em Portugal, em 1965, pelos seus fundadores, que reuniram peças de Portugal e de outras culturas na mesma casa”, afirmou, referindo-se em particular aos etnólogos Jorge Dias e Ernesto Veiga de Oliveira.
Paulo Costa sublinhava o contexto e as prioridades na base da criação do museu português, “ao contrário de outros países que criaram, na altura, museus especificamente de índole colonial”.