Crónicas

Uma casa que chame sua

Quando falamos de pessoas em situação de sem abrigo não estamos a falar de identidade; falamos de situações transitórias. Não se é sem-abrigo, está-se na situação de sem-abrigo.

E estar na situação de sem-abrigo diz respeito não só às pessoas que pernoitam no espaço público mas também às pessoas que, mesmo não estando a viver literalmente na rua, estão num alojamento temporário que não é suportado pelos seus próprios meios.

O relatório europeu sobre as Estratégias Nacionais de combate às situações de sem-abrigo e de exclusão habitacional, da responsabilidade da Rede Europeia em Matéria de Política Social (ESPN), não deixa margens para dúvidas: os principais fatores para o aumento do número de pessoas em situação de sem-abrigo são: 1) os preços exorbitantes praticados no mercado imobiliário (e aqui inclui-se compra ou arrendamento); 2) a precariedade laboral; 3) a liberalização das políticas de arrendamento (em Portugal com aquela que ficou conhecida como a Lei Cristas).

Neste diagnóstico, a Madeira não constituirá exceção, principalmente se nos lembrarmos de que temos a segunda taxa de risco de pobreza mais alta do País e, paradoxalmente, sermos a terceira Região do País com os preços mais elevados ao nível da compra e arrendamento de habitação. Percebe-se porque razão o problema tem vindo a agravar-se.

Em dezembro de 2008, a Região registava 60 pessoas em situação de sem-abrigo. Em 2017, 81 pessoas (45 das quais a pernoitar na rua). Estes números são apresentados no diagnóstico traçado no Plano Regional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo 2018/2022 (PRIPSSA). São números preocupantes? Julgo que sim. Até porque atualmente o número já ascende a cerca de 94 pessoas, só no centro do Funchal. Deste número, 72 pessoas pernoitam na rua. Isto significa que talvez seja aconselhável repensarmos as abordagens a este problema social.

Em primeiro lugar importa olhar para o modelo de intervenção traçado na Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA): ninguém ficar na rua mais do que 24 horas. Este é um modelo que exige rapidez porque sabemos que quanto mais tempo uma pessoa fica na rua, mais difícil é a reversão da situação. É necessário implementar políticas de habitação que esbatam os problemas enumerados – preços do mercado imobiliário, flexibilização do mercado de arrendamento – que previnam estas situações e que resolvam rapidamente os casos em que a prevenção não foi suficiente.

O programa «Housing First» (Casa Primeiro), promovido pela Associação Crescer, está a ser implementado em Lisboa desde 2013, e é um modelo com cerca de 30 anos que tem vindo a ser implementado em várias regiões e países com resultados francamente positivos. É um programa que começa por alojar as pessoas em situação de sem-abrigo em habitações tendencialmente individuais e, a partir daí, faz o acompanhamento técnico necessário a cada caso, no longo processo de integração social. Não são albergues, não são camaratas, não são espaços em que as pessoas não se sentem em casa. É a aposta num teto que seja seu, onde as pessoas possam sentir-se seguras e possam decidir coisas tão simples como quando lhes apetece apagar a luz.

Na Região, há iniciativas inovadoras; o projeto Cacifos Solidários, da Câmara Municipal do Funchal em parceria com a Associação Conversa Amiga (ACA) é um exemplo. Não é difícil perceber que os cacifos solidários são kits de sobrevivência que respondem aos anseios de quem está nesta situação: a importância de salvaguardar os seus pertences. Algo que intuitivamente toda a gente compreenderá, se pensarmos na relevância que têm os nossos pertences – sejam eles muitos ou poucos. Esta medida tem ainda a vantagem de possibilitar o acompanhamento das pessoas nesta situação por uma equipa psicossocial.

Em fevereiro de 2019, em sede de Assembleia Municipal do Funchal, foi apresentada a Estratégia Local de Habitação que prevê um Hotel Social. É uma resposta para situações de emergência que garante alojamento temporário para pessoas ou famílias na iminência de ficarem sem teto. A previsão desta medida foi motivo de escárnio na Assembleia Municipal por parte do PSD e do CDS. Terão procurado informar-se sobre o assunto? Terão lido os diagnósticos e recomendações europeias sobre o combate às situações de exclusão habitacional? Ou é apenas a ignorância atrevida ou a preguiça de quem não se deu ao trabalho de aprofundar o assunto?

Quando falamos de pessoas em situação de sem-abrigo, falamos sobretudo de situações de grande vulnerabilidade, ruturas socioafetivas, financeiras, laborais, uma espiral não planeada (e não desejada) que pode incluir carências económicas, violência, comportamentos aditivos ou outros problemas de saúde (física e mental). Por isso é fundamental pensar e reestruturar as respostas disponíveis. Nas palavras de Henrique Joaquim, gestor da Estratégia Nacional de Integração das Pessoas em situação de Sem-Abrigo, cada processo de reinserção deve ser desenhado à medida de cada qual, segundo as suas necessidades e na sua circunstância.

A Região só terá a ganhar se considerarmos seriamente estas outras formas de resposta. É urgente apostar em projetos de realojamento imediato que zelem pela dignidade das pessoas envolvidas; é necessário apostar num plano individual que trace um projeto de reabilitação para aquela pessoa ou família, no seu contexto e em função das suas fragilidades: As soluções universais onde não caibam os múltiplos contextos de cada um e cada uma não funcionam. É preciso inverter a intervenção garantindo, em primeiro lugar, uma casa que chame sua.