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Narrativa-conto: um pregador depressivo da Quaresma

O Senhor do céu e da terra mandou chamar à sua presença um contemplativo dado a imaginar soluções ousadas para resolver os problemas de uma cidade depravada. Comunicou-lhe: sai do teu povo e vai à periferia, tens mandato quaresmal como meu enviado especial a avisar essa gente má que vai ser castigada. Ele não queria aceitar. Ainda fugiu para se esconder porque tinha medo das consequências desagradáveis. Meteu-se num barco e andou fugido para longe até uma ilha distante. O barco foi surpreendido por uma tremenda tempestade. A tripulação bem rezou aos seus deuses para se salvarem, mas o barco ia mesmo afundar-se. Alguém seria o culpado. Com remorsos da sua desobediência o enviado deu-se por culpado e pediu que o deitassem ao mar. Foi engolido por um grande peixe e, no seu ventre, entre a vida e a morte, deu-se à oração durante três dias e o peixe poupou-o e entregou-o a uma praia já mais perto do país dos depravados a quem fora enviado. Por fim, aceitou a sua missão. Tinha quarenta dias para a cumprir, o tempo da quaresma, e preparou-se bem, pensava ele, para o espetáculo do castigo daquela gente. A nação onde Deus o mandou vivia mesmo depravadamente e era inimiga do seu povo. Tinham que morrer todos, e tinha o encargo de anunciar a todos, a começar pelo rei, essa desgraça. Não, não era a Rússia nem a Coreia do Norte, nem o Afeganistão ou outro território inundado de corrução e podridão moral desses tempos. Entretanto pensava na desforra, à maneira dos arautos dos reis antigos e foi gritando pelos caminhos e cidades: acabou-se, estais tramados. Morrereis todos, sois uns malvados. Dentro de pouco tempo sereis destruídos, gritava quase contente com a vingança. Andais a blasfemar, a mentir, a viver na devassidão, a violar as mulheres e a abortar os vossos filhos e a causar injustiças aos frágeis, idosos, crianças e a tornar o mundo num inferno. Ides pagá-las dentro de quarenta dias. Quando acabou a sua missão subiu a um monte donde contemplava a cidade maior do país, montou a tenda e ficou à espera de gozar o espetáculo que anunciara para ver como iria desenrolar-se, talvez, fogo do céu ou uma invasão de exércitos armados até aos dentes e vingativos, vindos doutro país inimigo, igualmente ou mais corrompido ainda, para ocupar, à força, todo o território e cumprir a vingança de Deus como ele a tinha proclamado. Estes invasores não eram melhores que os invadidos e nos seus países praticavam quase os mesmos males. E, ficou a imaginar com seria. Eram inimigos e queriam era aproveitar-se das riquezas do país e das fraquezas destes maldosos e fartarem-se de os explorar, roubar ouro, dinheiro, violarem mulheres, crianças e jovens, e de matar à vontade. Passaram dias e mais dias e, por fim, terminaram os quarenta dias e… nada. E entretanto ao descer do monte para se ir embora dali, antes de lhe fazerem mal, ouviu algumas pessoas que encontrou a contar o que sucedera: o rei considerou com remorso a situação maldosa de todos e logo enviou arautos pelo território com o seu decreto a ordenar mudança nos comportamentos ímpios e vergonhosos. Todos tinham que fazer penitência vestindo-se de serapilheira, lançando cinza sobre si mesmos, limitando as refeições e guloseimas na esperança que os deuses iam reconsiderar e perdoassem. E terminavam por dizer ao pregador que tinham sido poupados. Este afastou-se muito ressentido com este perdão. Já no deserto estendeu-se ao sol ardente e pediu a morte, tal era a sua frustração. Sentia-se derrotado e desautorizado. O seu Deus teve compaixão dele e fez crescer uma planta que o protegeu do sol que já o ameaçava de morte. Ficou contente, mas no dia seguinte um escaravelho roeu a raiz da planta que logo secou e ele queixou-se a Deus ainda mais revoltado. Deixou a periferia da sua terra e pôs-se a caminho para o centro. Pelo caminho descansou e adormeceu. A dormitar, meio a sonhar meio a dormir, pareceu-lhe ouvir uma voz a sussurrar: tu, desobediente pecador; eu tive compaixão de ti quando arrependido me rezaste a pedir compaixão e eu mandei um peixe para te salvar, fiz crescer um abrigo para te dar sombra. Não devias tu ficar contente quando te contaram que aquela gente tinha sido perdoada porque se arrependeu, fez penitência e deixou a sua vida depravada e ímpia?

(Para ler mais; ler as versões de Jonas, 1-4; Daniel, 9, 4b-10; e Lucas, 6, 36-38 ).

Funchal, Quaresma, dia do Pai, 19 de março de 2025.

Aires Gameiro

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