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Crónicas

O fim do Inverno

A casa do Laranjal tinha dois armários para a roupa quando a minha mãe encomendou outro ao primo Fernando, um guarda-fato para arrumar tudo o que estava por passar. Foi uma medida para desocupar as cadeiras e a mesa do quarto de engomar, um lugar caótico de roupa lavada, bordados e papelada da casa de bordados e onde se parava antes de sair para ver a figura no espelho de corpo inteiro. A encomenda não se fez por falta de espaço e não havia sequer necessidade de encontrar um fim para o meu vestido da primeira comunhão ou para os três fatos e gravatas fora de moda do meu pai. E se a saia e o casaco verde escuro que a minha mãe levou à igreja no dia em se casou não estavam nos cabides era apenas por uma razão: tinham sido usados até romper.

O vestido de noiva foi trocado pelo telhado e, embora lamentasse, a minha mãe estava ansiosa por ter uma vida e, por isso, dava mais jeito o telhado. E essa foi, se calhar, uma das primeiras escolhas no plano para ter uma família e construir uma casa. A dona Celina sacrificou o vestido e a festa de casamento, bordou lençóis e almofadas para o enxoval de noivas italianas (a casa de bordados exportava para Itália) e vendeu orquídeas e ovos para alimentar o sonho que levou 20 anos a ficar pronto. Quando eu cheguei à adolescência as obras ainda consumiam grande parte do dinheiro que a minha mãe guardava debaixo do forro da gaveta da cómoda e dos juros da conta do banco.

Os meus pais estavam cada vez mais orgulhosos das duas cozinhas, das duas salas e dos arranjos no quintal que faziam da chegada da primavera um acontecimento. As ameixeiras carregavam de flores brancas e os canteiros enchiam-se de cor e nunca mais tive aquela sensação de acordar numa manhã e perceber que os dias grandes e o bom tempo estavam a chegar. E embora fosse bonito, eu era uma adolescente e sabia que o fim do Inverno não trazia apenas sol. Assim que o calor começava a subir a roupa deixava de ser adequada e, no armário, não havia opção além do vestido de sair na procissão, umas t-shirts surradas do Verão anterior e, debaixo do guarda-fato, um par de sapatos brancos gastos. A roupa no uso ia ser quente demais, a de Verão seria muito fresca e muito usada.

Eu lembro-me de remexer nos armários das tias e da minha prima Ana, a ver se, com um jeito, fazia um milagre, se me deixavam levar um casaco leve, um t-shirt ou uma camisa fora de moda que se pudesse tirar os colarinhos. Quem sabe o tio Humberto não tinha um pedaço de tecido ou a tia Conceição não arranjava quem me fizesse uma camisola em tricô entre as amigas do hotel, podia juntar o dinheiro do lanche para comprar os novelos de linha de algodão, muito à moda dos anos 80. A história repetia-se todos os anos no fim do segundo período e nos últimos testes antes da Páscoa: ou a roupa quente ou a roupa velha. As escolhas não eram as melhores, mas até a adolescente insegura que fui sabia que, em casa, todos se sacrificavam. A minha mãe tinha ficado sem vestido de noiva; o meu pai andava a poupar para uma arca congeladora.

Às vezes a minha tia Conceição comprava uns casacos mais à moda ou a minha prima Ana dava cinco contos para fazer o que quisesse e eu ia com a minha mãe às compras numa quarta-feira depois dos bordados. E era tão complicado encontrar o que fosse bonito, que me servisse e coubesse naqueles cinco contos. As voltas que se dava até trazer umas calças de ganga e uma t-shirt, mas mesmo quando não era o melhor, nem mais à moda, eu vinha feliz para casa, dava a ideia de que, depois daquilo, a minha vida ia correr melhor, talvez um rapaz dos que jogavam à bola reparasse em mim. Eu não sabia sequer o que fazer se isso acontecesse, a não ser perder a capacidade de articular uma frase e corar até as orelhas.

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A ideia reconfortava-me e, pelo menos, podia imaginar o que podia ser se deixasse de ser invisível no pátio da escola. Na casa do Laranjal sonhar e pensar não estavam entre o que se podia sacrificar. A minha mãe continuou a sonhar com um lago para patos no jardim e uma casa de sobrado; o meu pai nunca deixou de pensar no que teria sido se tivesse ido à Índia no tempo da tropa e o meu irmão escrevia poesia e queria publicar livros. Eu era a mais nova e, além das roupas bonitas, não sabia o que queria, nem o que ia fazer, nem sequer o que devia desejar, mas crescer entre sonhadores, entre pessoas que todos os dias faziam escolhas por um propósito lançou uma luz sobre o meu caminho.

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