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Fact Check Madeira

Serão as famílias os principais responsáveis pelas altas problemáticas nos hospitais da Madeira?

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A questão das altas problemáticas, que nos serviços de saúde são chamadas de ‘altas clínicas’ e internamentos por ‘questões sociais’ voltaram à ordem do dia na Madeira, pelo facto de a capacidade de internamento hospitalar do SESARAM estar esgotada, como admitiu o director clínico, na terça-feira.

Júlio Nóbrega revelou haver 232 utentes com alta clínica, que continuavam internados por razões sociais. Por isso, havia muitos doentes, cerca de 40, no serviço de urgências do Hospital Dr. Nélio Mendonça, à espera de cama, com todos os constrangimentos que tal facto acarreta, tanto para o serviço de saúde, como para os próprios doentes, que ficam expostos a factores de risco pessoal.

A notícia a partir das afirmações do director clínico suscitou cerca de 80 comentários no Facebook do DIÁRIO, muitos deles a culparem o Governo Regional, por não ter sido capaz de resolver um problema que se arrasta há muitos anos, e vários outros a responsabilizarem os familiares, por não irem buscar os idosos ao hospital. Muitos leitores/comentadores manifestaram a sua indignação por as famílias abandonarem os idosos nos hospitais.

Mas será essa a grande causa da existência de altas problemáticas?

Na Madeira, não são revelados muitos dados e/ou estudos sobre a problemáticas das altas clínicas. O mais comum é, em alturas mais complicadas, como a presente, o SESARAM revelar os números do momento. Essa é uma dificuldade na verificação veracidade da afirmação dos leitores, quanto à responsabilidade das famílias.

Neste trabalho, vamos usar estudos nacionais, partindo do pressuposto que a realidade regional segue a tendência nacional, e os dados de um estudo do próprio SESARAM, divulgado pelo DIÁRIO em 2018, sobre as causas da existência de altas problemáticas, nas unidades de saúde da Região.

Por mais simples e próximo, comecemos por este último aspecto.

O referido estudo, que incidiu em todas as unidades de saúde, que na altura incluíam os hospitais, alguns centros de saúde e o Atalaia, identificou 531 pessoas em alta problemática. Dessas, apenas 12% resultavam de ‘Desresponsabilização familiar’ e ‘Conflitos/violência familiar’, correspondentes a 38 e 27 casos, respectivamente.

Não deixavam de ser 68 casos, mas a maioria esmagadora resultava de outros factores. O mais expressivo, com 237 utentes incluídos, era ‘Incapacidade de prestação de cuidados devido ao agravamento da dependência’, seguido da ‘Ausência de cuidador’, que afectava 172 idosos, logo seguida dos casos em que o cuidador, também ele, tinha problemas de saúde.

A nossa pesquisa identificou vários estudos académicos e técnicos sobre altas problemáticas a nível nacional. Todos eles sugerem que o fenómeno e a quantidade em que o mesmo manifesta se deve muito mais a questões outras que não a responsabilidade das famílias – terem ou não ‘coração’.

Vejamos alguns: Um estudo de Sara Amaro Matos, de 2015, sobre ‘A influência do planeamento da alta hospitalar no número de dias de internamento do doente’, diz que as principais causas do protelamento da saída dos idosos dos internamentos hospitalares incluem a falta de preparação adequada para a alta, a necessidade de apoio nas actividades da vida diária (AVD's) e a presença de condições de saúde, que aumentam a dependência. Além disso, muitos idosos vivem sozinhos ou com cônjuges da mesma idade, o que dificulta a transição para casa sem suporte adequado. A identificação precoce das necessidades específicas desses pacientes é crucial para evitar a permanência desnecessária no hospital.

Outro estudo, de 2018, da autoria de Fátima Ferreira – ‘Planeamento de alta hospitalar: perspectivas e reflexões acerca dos protelamentos sociais em Portugal’ – aponta como principais causas do protelamento social na alta hospitalar factores que incluem a incapacidade dos familiares em acolher e prestar cuidados ao doente, a falta de respostas adequadas da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados e da Segurança Social, e a situação de idosos que vivem sozinhos ou que necessitam de cuidados domiciliares, que suas famílias não conseguem fornecer. Além disso, a intervenção tardia do Serviço Social e a ausência de articulação entre os profissionais de saúde também contribuem para o problema.

Num texto de Maria João Lopes, no Público do dia 4 de Março de 2012, intitulado ‘Quando o hospital se transforma na casa dos idosos’, as causa mais comuns para as altas problemáticas eram sintetizadas: “Mais do que idosos abandonados pelas famílias, os hospitais registam sobretudo casos de pessoas de idade que viviam sozinhas, sem família, e que não têm condições para regressar a casa, depois de lhes ter sido dada alta. São situações destas que fazem com que os internamentos se arrastem por tempo indefinido, até que surja uma solução como a admissão num lar.”

Um outro estudo, de Inês Borges Sousa, publicado em 2012 – ‘Abandono de idosos em hospitais: o caso do Serviço de Urgência do Hospital de Santo António’ – concluiu: “A intervenção do Serviço Social e dos Profissionais de saúde em colaboração com as redes de apoio formal e informal permite, assim, equacionar respostas junto do idoso e da sua família capazes de prevenir situações de abandono. Os resultados revelam ainda a necessidade de desenvolver estratégias de intervenção e de apoio às famílias para que estas reúnam condições que lhes permitam assumir a responsabilidade de cuidar dos seus familiares idosos.”

Já em Maio de 2024, ao Público, o presidente da Associação Nacional de Cuidados Continuados (ANCC) identificava o abandono de idosos pelas famílias como uma das principais razões para os aumentos dos internamentos sociais, o que conduzia a grande pressão sobre o sistema (no caso, na Rede de Cuidados Continuados): "Há uma discussão que a sociedade portuguesa tem de ter: o abandono dos idosos pelas famílias. Na minha própria unidade, em Sintra, fiquei surpreendido, porque, num total de 59 utentes afectos à Rede Nacional de Cuidados Continuados, 27 — quase 50% — são abandonados pelas famílias. Isto lança uma grande pressão no sistema, nomeadamente a nível hospitalar, daí que o número de casos sociais.”

Esta é uma síntese dos estudos conhecidos sobre as altas problemáticas, na Madeira e no País.

Como se constata, os estudos apontam no sentido de afirmarem fundamentos diversos e só minoritariamente a vontade das famílias como causa das altas problemáticas. Até o caso em que o abandono familiar é mais relevado, não chega a metade das pessoas, diz respeito a cuidados continuados (não directamente a um hospital) e é uma opinião, fundamentada em factos, mas não um estudo científico.

Acresce a tudo isto o facto de, na Madeira, como visto, a desresponsabilização familiar ser altamente minoritária entre as causas da existência das altas problemáticas.

Assim, as afirmações que culpabilizam as famílias pelas altas problemáticas nos hospitais do SESARAM são avaliadas como falsas.

“A culpa é das famílias, porque muitos (idosos) têm alta e não os vão buscar” – R. Rocha – Facebook do DIÁRIO