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Crónicas

O frio

Os dias de chuva, que às vezes somavam semanas, traziam um desconforto húmido à casa do Laranjal. Os líquenes forravam os muros de verde e os canteiros do jardim enchiam-se de azedas, enquanto o meu pai matava o tempo na loja, entre ferramentas, preocupado com a falta de trabalho e dinheiro. A minha mãe passava a tarde a bordar encostada à janela da sala de onde só levantava para fazer o jantar ou para salvar as orquídeas do granizo, do vento e da chuva grossa e pesada. Do ribeiro subia um frio húmido que se pegava às paredes e era ainda pior quando, de manhã cedo, a minha mãe abria o postigo da porta da corredora, e dizia “o tempo está ao mar, está tempo abaixo”.

Nesses dias a humidade entrava em todos os objectos e amolecia as bolachas esquecidas no balcão da cozinha. E não era bom atravessar o quintal, descer os degraus da entrada e correr por um caminho molhado para apanhar o autocarro das sete e meia. A viagem fazia-se entre guarda-chuvas a pingar, janelas transpiradas, todos apertados e a balouçar com os solavancos e as travagens, mais ou menos anestesiados pelo cheiro da comida que vinha dos termos do almoço. Eu lembro-me das manhãs na escola dos Ilhéus, com os pés frios e a bainha das calças de ganga molhada, e de sofrer por antecipação ao pensar no caminho a pé até à Avenida do Mar.

O guarda-chuva, daqueles de dobrar em muitos para caber dentro da pasta, virava ao contrário com o vento e, uma vez, na pressa de chegar à paragem, saltou-me um sapato do pé e tive de correr entre os carros para o resgatar. Foi uma das maiores vergonhas da minha adolescência e uma grande aflição também. O que seria de mim se ficasse ali, debaixo de uma roda, e como ia explicar tudo à minha mãe, que não se cansava de sublinhar a minha falta de préstimo. E o meu pai? Eu sabia que com chuva não havia trabalho e, sem trabalho, faltaria dinheiro. E os sapatos, todos os sapatos, eram caros e, por isso, a minha mãe mandava os nossos ao sapateiro uma e outra vez.

E por azar - ou talvez seja a memória a trair-me - os anos mais complicados da minha adolescência coincidiram com invernos chuvosos, de semanas inteiras de tempo ao mar, com a humidade a pegar-se às paredes e ao chão da cozinha ou de dias frios, com a neve a pintar de branco as serras e as histórias das outras miúdas, no intervalo grande, a falar de bonecos de neve. Eu tive de esperar muitos anos até ver neve verdadeira, o granizo que furava as hastes de orquídeas não contava, mas mais do que isso era a temperatura abaixo dos 15 graus que me doía. A minha roupa, como tudo na casa do Laranjal, tinha de dar para o frio, para o sol, para o calor e para a chuva.

No meu armário não havia casacos bonitos e quentes, havia roupa que eu usava uma por cima da outra e era preciso a mesma coragem para enfrentar o frio como para se aventurar pela chuva e estar a horas na primeira aula da manhã. As minhas colegas exibiam parkas, casacos à Corto Maltese com botões em osso por cima de camisolas de gola alta e calças de ganga e nenhuma tinha o meu ar desconjuntado, dava a impressão de ter atravessado montes e vales para vir dar ali, à escola dos Ilhéus. Tantos anos depois destes invernos da minha adolescência o meu armário continua a não ter casacos quentes e bonitos.

De uma certa maneira é a voz da minha mãe que oiço todos os anos quando, na loja, rondo a roupa de Inverno e penso em quantas vezes vou vestir aquelas camisolas de lã e os casacos e ficam lá. Quando há frio visto roupa sobre roupa e espero que passe depressa, tal e qual como fazia aos 14 anos, quando abria o postigo da porta e ficava a ver a chuva a cair no quintal, tão entediada como os cães debaixo do zinco junto ao poço de lavar roupa e todos os outros seres vivos das redondezas. No Laranjal, com os muros cobertos de líquenes e os canteiros cheios de ervas daninhas, a chuva, o frio e o vento, toda aquela força dos elementos que chegava com o Inverno colava à pele um desconforto que só desaparecia quando os dias ficavam maiores e mais amenos.