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Crónicas

O bom, o mau e a procissão

Tornou-se lugar-comum exigir aos partidos, sob pena de cobardia popular, que aceitem a convocação sucessiva de eleições. Embora, num regime democrático, a ida às urnas raramente seja um problema, nunca é a panaceia para todos os males que nos afligem. Que o diga Emmanuel Macron que, na sua mensagem de ano novo aos franceses, reconheceu que a dissolução da Assembleia, decidida por si no verão passado, trouxe mais instabilidade e divisões do que soluções ao povo francês. Terá Marcelo ouvido o discurso do homólogo francês?

O bom: Jimmy Carter

No ano em que Trump voltou a conquistar o direito a ocupar a Casa Branca, é ainda mais importante relembrar o que nos deixou Jimmy Carter. Tal como Trump, Carter aterrou na política como um desconhecido para o seu próprio partido, tendo acabado por arrebatar os democratas a caminho da vitória nas eleições presidenciais em 1976. As semelhanças entre Jimmy e Donald acabam aí. Não que Carter tenha sido um grande presidente. Aliás, não terá sido por acaso que foi o primeiro democrata, desde 1888, a não ser reeleito. Ainda assim, com um mandato marcado pela infindável crise dos reféns iranianos, pela inflação persistente e pela longa recessão na economia americana, Carter lançou os pilares de uma política de paz entre países. Fê-lo através dos acordos de Camp David, onde selou a paz entre o Egito e Israel, devolveu o Canal ao Panamá e assinou um acordo de redução de armamento com Brezhnev. Foi a partir daí, e já depois de deixar a Casa Branca, que Carter se reinventou. Não só por ter inaugurado a possibilidade de uma vida política depois de uma derrota eleitoral, mas por tê-lo feito em prol da resolução de conflitos armados, da defesa dos direitos humanos, da promoção da democracia e da luta contra o sofrimento, onde quer que ele exista. O legado de Carter continuou e continuará no “Carter Center”, fundado em 1982 logo após a sua derrota, e que até hoje continua a reduzir o sofrimento de milhões de pessoas em todo o mundo. Em 2024, Carter parece um homem de outro tempo. Um tempo que parece difícil de voltar.

O mau: Rusga no Martim Moniz

A notícia é do ano passado, mas a histeria coletiva em torno de uma rusga policial foi de tal ordem que merece nota no ano que começa. A primeira é para a aparente ignorância que o descomando verbal da esquerda sugere, de que se realizam rusgas policiais – iguais à realizada no Martim Moniz – todos os dias em Portugal. Esse simples facto não torna a Polícia racista, não torna o governo fascista, nem permite comparações aberrantes entre uma operação policial e pelotões de fuzilamento da Alemanha nazi. Que a reação descabelada venha do anti-fascismo histérico e militante que grassa no Bloco de Esquerda e no PCP não é novidade, mas que tenha eco no Partido Socialista, nomeadamente em Pedro Nuno Santos, é profundamente preocupante. Essa é a segunda nota sobre a rusga. A reação do PS, secundada por várias figuras centrais do partido, indicia não só um perigoso alinhamento com a extrema-esquerda em matéria de segurança pública, mas também uma profunda desonestidade política. Por um lado, o arrastar da Polícia para o debate partidário e para os exageros retóricos reservados aos agentes políticos cola o PS a um discurso extremista e anti-polícia. Por outro, a indignação desconchavada dos socialistas em relação a esta rusga e a complacência com as dezenas de rusgas policiais realizadas no mesmo sítio, da mesma forma mas com um Governo de cor diferente no poder, indiciam um aproveitamento político explosivo de situações tão delicadas como são a política de segurança e o racismo. Afinal, o alvoroço mediático provocado pela rusga no Martim Moniz diz pouco sobre a Polícia, mas revela muito sobre a fragilidade de um debate político que prefere amplificar preconceitos em vez de discutir factos com responsabilidade e moderação.

A procissão: A audição dos partidos em Belém

No dealbar de um novo ano, há maus hábitos que teimam em não desaparecer. Aprovada a moção de censura na Assembleia, organizou-se uma apressada procissão partidária ao Palácio de São Lourenço para dar conta da boa nova. Um a um, todos os líderes partidários acorreram ao núncio do Presidente da República para dar conta do apoio unânime à realização de novas eleições. Pela importância da mensagem, ou talvez pela aparente falta de telefones no Palácio, o Representante da República voou até Belém para transmitir a Marcelo o que já tinha sido repetido, à exaustão, por todos e em todos os meios de comunicação social. Os partidos querem eleições. O que parece óbvio, alguns até diriam inevitável, suscitou na Presidência da República uma dúvida que nem a consoada ou a primeira oitava ajudaram a desvendar. Perante a dificuldade presidencial, anunciou-se nova procissão dos partidos, desta feita com destino a Belém. O cortejo partidário terá, com toda a certeza, direito às encenações do costume. As declarações genéricas à entrada do Palácio, o teatrinho de trivialidades na sala com Marcelo, seguido do final épico, mas trágico, onde se anunciará o que todos já sabemos desde que foi aprovada a moção: a Madeira vai a eleições. Anacronismos à parte, alguns deles constitucionais, será que custava muito a Marcelo vir à Madeira ouvir, de uma só vez, os partidos? É que ir a Lisboa, ao beija-mão, só para pedir eleições tem muito pouco de autonómico.