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Crónicas

Um lugar esquecido

Quando os ventos da revolução empurraram o mundo novo encosta acima, o Laranjal era um lugar esquecido, onde as mulheres iam à missa ao domingo, as crianças frequentavam as classes da catequese e os homens ficavam no fundo da igreja, a uma distância segura da fé e das histórias do padre Rebola, o pároco conservador a quem competia a gestão da moral católica nos anos da minha adolescência. Pela América Latina ganhava força a teoria da libertação, mas, ali, na minha paróquia, a religião continuava a ser o que sempre fora.

O casamento, para valer, era o da igreja e ai das raparigas que se apaixonavam por um homem divorciado. O falatório que isso dava, mas, apesar das regras, parte das minhas melhores memórias da adolescência estão no adro e na igreja, no salão paroquial e no descampado de terra batida onde se montava os bazares das festas, no Verão. A imagem da banda a tocar a música do Dallas com os miúdos de sapatos de verniz a correr e a levantar poeira é a primeira que me ocorre sempre que penso na Visitação, a paróquia onde me instrui para ser uma boa católica, das que iriam todos os domingos à missa.

A crise de fé do meu irmão - que se declarou ateu aos 15 anos - deixou as minhas tias em sobressalto e a minha mãe em desespero. Podia lá ser, aquele rapazinho tão bem educado, a quem obrigaram a benzer-se com a mão direita (a esquerda com que fazia tudo não podia atrair coisa boa), dizia e repetia que não acreditava na existência de Deus. E ele tinha feito as classes todas da catequese, a primeira comunhão, o crisma e até fizera a guarda ao Santo António grande para o proteger das alfinetadas das raparigas ansiosas por casar.

As minhas tias acreditaram que era tudo fervor católico, aquele interesse por ser campista (uma versão simplificada de escuteiro) e por sair fardado na procissão, mas o meu irmão queria acampar e andava de olho numa rapariga do grupo. A religião era a última das preocupações daquele adolescente que, por ser travesso, fez o crisma com um olho negro e não demorou muito a decidir que a igreja, a católica ou outra qualquer, não era para ele. No fim, sobrou o gosto por acampar e as discussões acesas com a minha mãe à mesa da cozinha e no quintal, enquanto esperava pelo autocarro e repetia que Deus não existia, disso tinha a certeza.

A minha mãe era uma senhora conservadora, que seguia à risca as tradições, que nos dera a educação e afligia-a aquele filho que, de repente, pensava por si e ainda provocava. Foram tantas as discussões que decidi não comentar sequer as minhas dúvidas. Um filho era complicado, uma filha era bem pior, o que podia vir a seguir e não havia coisa que me assustasse mais do que a minha mãe decidir que, a bem da fé e do respeito, seria melhor acabar com a extravagância dos estudos. E eu gostava das conversas com a malta do grupo de jovens depois da missa, naquelas manhãs de domingo, ao sol e ouvir os rapazes e as raparigas mais velhas a falar.

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Eu tinha 14 anos e queria ser com eles, despachada, cheia de opiniões. Se acreditava mesmo em Deus era outra história, mas gostava de fazer parte do grupo, de participar nas excursões, nos encontros na cidade com outros grupos de jovens, de integrar o auto de Natal, de fazer teatro e até de ir, ao domingo à tarde, aos retiros de reflexão do padre Rebola, fazer a mesma cara séria dos outros, mesmo quando estava com a cabeça em assuntos menos profundos como as roupas e maquilhagem. Fazer parte daquele grupo era o mais importante, as portas que abria para as festas e os slows no salão paroquial valiam todas as questões que pudesse ter sobre a fé.

E acho que todas as pessoas passam por um momento assim, algures na adolescência, quando procuramos desesperadamente perceber quem somos. Para mim foi o grupo de jovens da Visitação, debaixo da gestão conservadora do padre Rebola num tempo em que um mundo novo entrava pelas nossas vidas, ainda o Laranjal era um lugar esquecido e as pessoas da cidade tinham dificuldade em localizar no mapa.

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