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Crónicas

Não são eles, somos nós

Quando nos responsabilizamos pelo que nos falta, sabemos também estabelecer limites e fronteiras, solicitações internas e externas, ao encontro das nossas necessidades. E nesse processo ganhamos autoconhecimento, autoestima e uma autoconfiança nunca antes vistas.

“Ó rapariga, aquilo deu-me uma camada de nervos!! Peguei e fiz eu!! Ele demora a pensar no que é para fazer e nem faz que preste!” Ouvi, num corredor de supermercado, vindo de uma mulher, na casa dos seus 40 e muitos anos, que se lamentava a uma amiga. Dizia que vivia sobrecarregada, estourada, que fazia tudo e um par de botas. Sozinha. Casa, filhos, trabalho externo. Nada que eu não tivesse escutado antes, a muitas mulheres. Normalmente, às que se queixam que os maridos, ou companheiros, que os filhos, “não ajudam” em casa. Pois… parece-me que começa neste ponto: Não é ajuda é partilha.

Vou generalizar o conteúdo desta crónica, para efeitos de reflexão e para que possa ser aplicada às famílias que heteronormativas (ou seja, onde o casal é um homem e uma mulher e existem filhos – em comum ou não).

A casa (família) é um sistema e cada um de nós é um subsistema da mesma. Cada qual tem uma função própria, específica, a operar, para que o todo funcione em harmonia e fluidez. Ora, quando um subsistema assume a função que compete a outro(s) fica sobrecarregado. Se for uma opção, ou se for uma espécie de comportamento adaptativo, por necessidade, durante um período (curto) não oferece resistências, o problema tem início quando se prolonga ou quando emerge de necessidades por satisfazer (como uma autoestima frágil, por exemplo). Pouco a pouco, emergem os sinais de desgaste. Já, se cada um viver consciente de quais são os seus dons, quais são as suas competências e necessidades, se estiver consciente do todo, o sistema auto-organiza-se ao mínimo sinal. Tende para a união e para o todo. Sem dramas, sem discussões ou esforço.

A clareza do que aqui escrevo não esteve sempre presente na minha vida. Vivi demasiados anos enredada na narrativa vigente de que homens e mulheres devem viver em total igualdade. Enquanto mulher que sou, naturalmente feminina, com berço numa família de tradição matriarcal, lutei muitos anos para que a parte ‘masculina’ que me habita, vingasse e me alavancasse para arenas tradicionalmente mais masculinas. Fui bem sucedida, alcancei conquistas únicas, fiz história na neurolinguística. Mas a custo de quê? De me desconectar de uma parte primordial da minha essência. Acontece o mesmo aos homens, quando, acreditando nas mesmas narrativas, se transformam numa espécie de “fadas do lar”, quando não mostram “peito feito” (e não falo de brutidade). Quando deixam de ser porto seguro, quando esvaziam a ambição de irem mais longe. O que uma mulher (matriarcal, como vários autores cunharam, uma mulher feminina) procura num homem é segurança, não é um prestador de serviços do lar. Este será tema de outra crónica Essencial.

Nós, mulheres, não somos geneticamente mais dotadas para a gestão do lar e da família do que os homens. Somos, contudo, e a ciência já demonstrou, neuro-biologicamente e culturalmente mais cuidadoras, intuitivas e espirituais. Os homens são mais racionais e físicos. A cooperação entre ambos gera harmonia e ‘sucesso’. Gera bem-estar físico e emocional, no todo.

Assumo que sou muito feliz por ter este “dom” em mim. Invade-me uma sensação de plenitude ao poder co-servir a minha família desde um lugar de amor. Consciente da teoria dos sistemas. Noto porém, que muitas mulheres com as quais me relaciono em contexto pessoal e profissional (ainda) não desenvolveram esta consciência. Muitas autoproclamam-se independentes, falam dos homens diabolizando-os, apregoando que jamais voltarão a viver com um deles na mesma casa (mesmo quando têm relações). Outras assumem (desde um lugar que revela mágoa, manifestando-se em comportamentos arrogantes) que só elas é que sabem gerir uma casa e uma família. E não tem de ser assim. Não deve, se queremos viver com saúde física e mental. Esqueçam as ‘check-list’ e as narrativas da moda.

Então, o que está a falhar em tantas famílias? Pode ser o facto do sistema estar em desequilíbrio, precisamente por haver algum elemento que veste em demasia uma energia que não é a sua primordial e assume uma carga mental e emocional mais pesada. Se falarmos do projeto família, por exemplo, regra geral, este é um papel que é sobretudo, assumido pela mulher. Só que a mulher atual, também trabalha fora de casa, e tem (legitimamente) a ambição de escalar uma boa posição na sua carreira profissional. Uma ambição exigente, que aumenta quando a profissão é tradicionalmente mais masculina levando, tantas vezes, a mulher a vestir (novamente) a energia masculina em excesso, desconectando-se do seu lado mais cuidador e intuitivo.

A verdade é que a roupa não aparece por magia nos roupeiros e nas gavetas, a comida não aparece magicamente nos pratos, às refeições… Atrás destas tarefas todas, há alguém que observa (investiga as necessidades individuais e coletivas), que planeia e que toma decisões. Depois, executa, muitas vezes sem partilhar o planeamento e a própria execução. Tudo isto exige um profundo trabalho emocional pessoal e de antever as emoções, sentimentos e comportamentos dos elementos da família, de cuidar do bem-estar geral. Para dissipar esta carga, a mulher tem, necessariamente, que explicar as tarefas aos demais. Ora, isto exige tempo, disponibilidade, paciência e sobretudo, uma autoestima nutrida, que dispensa sobreccaregar-se de tarefas em busca de aprovação externa. É uma ‘pescadinha de rabo na boca’… são as mães que correm atrás de elogios em vez de reconhecimento, as esposas atrás de aprovação do marido - para sentirem que existem, que são dignas e merecedoras de amor. Só que simplificamos a nossa vida quando vivemos com autoestima - é ela a nossa estrutura interna de adaptação e evolução. É a bússola interna que está lá quando enfrentamos desafios, problemas, críticas e obstáculos. Que nos permite reconhecer as conquistas, a nossa evolução, criar e manter relações saudáveis. A autoestima é a relação mais importante que podemos alguma vez ter, a relação connosco.

Elaborei uma breve lista de tarefas físicas e emocionais (no contexto das refeições) que podemos, facilmente partilhar e assim, trazer leveza e harmonia ao sistema. Não é uma divisão de tarefas que vai solucionar os conflitos que surgem na área da gestão familiar, é preciso partilhar a gestão emocional e as necessidades comuns (no fundo, o trabalho invisível). Esta lista pode ser um bom princípio.

• É, ou não é possível, partilhar a investigação das refeições que gostaríamos de ingerir ao longo de 15 dias?

• Decidir, em conjunto, o que comprar para a confeção das mesmas?

• Quem verifica quais são os ingredientes que existem na dispensa e quais aqueles que é necessário comprar?

• Fazer as compras, em conjunto, ou através da internet, decidindo quem vai comprar o quê, onde e quando?

• Existem ou não restrições alimentares?

• Quem assegura a verificação do valor nutricional do que é comprado?

• Comparações de preços, quem faz?...

• Quem coloca a mesa?

• Definir, a dois, a que horas são as refeições?

E assim, sem esforço e sem resistência - porque investimos a nossa energia e colocámos o nosso foco no que está no nosso campo de responsabilidade e ação - deixamos a raiva, a critica, o julgamento de parte, deixamos de pôr as culpas no outro - ou seja, deixamos de investir o nosso tempo a tentar mudar o que está fora do nosso controlo.