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A Guerra das Trincheiras

Ao ler “Foi assim a Guerra de Trincheiras” de Tardi, liguei à conjuntura atual que, por vezes, parece estar em estado de sítio e sem lideranças capazes

A Guerra das Trincheiras foi uma estratégia de combate da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) que consistia em cavar valas nas regiões fronteiriças, nomeadamente na Bélgica e em França. Estas valas, ou linhas de contenção, serviam de abrigo, de casa e de “armazém” de abastecimento das tropas. Tinham ainda uma outra função fundamental que era a de garantir a comunicação, movimentação e o combate.

Os espaços físicos entre as trincheiras eram conhecidos como “as terras de ninguém”, isto é, as zonas neutras do território. Todos sabemos que, em guerra, não há neutralidade. A bem da verdade, em quase nada nesta vida é possível a neutralidade, até porque ela carrega em si mesma uma opção. Pisar a terra neutra significaria ser morto.

A estratégia, nas trincheiras, passaria por combinar tecnologia, armamento e as táticas tradicionais de guerra. Os soldados viviam longos períodos nestas valas construídas de forma paralela e existiam túneis estruturantes, com infraestruturas de abastecimento e de comando, que facilitavam a construção de caminhos sobre os territórios inimigos.

O que fazemos hoje, em outro tipo de guerras, não é muito diferente: há trincheiras frontais e as de reserva. As primeiras trazem-nos imagens da brutalidade, do desespero e da devastação, por estarem próximas do inimigo. As trincheiras de reserva consistiam num sistema defensivo, afastadas da linha da frente ativa, que serviam ao descanso e à alimentação dos soldados. Quem estava nestas trincheiras sabia que o passo para a linha seguinte, onde ocorriam os ataques frontais, seria a morte numa guerra em que a defesa não poderia ser eterna. Era neste território de reserva que se tratavam os feridos.

Quando penso nesta tática de guerra fico com a sensação que a estagnação, ao frio, à fome e à sede, só pode acabar em mais mortes e exposição a todos os horrores que os humanos são capazes de levar a cabo. Ainda que denominado de racional, o humano é o ser mais letal do planeta.

Não imagino o que seria correr pelas “terras de ninguém”, a céu aberto, na lama, sob os destroços e corpos humanos, com artilharia e metralhadoras a disparar ininterruptamente sobre as cabeças dos soldados. Alguns iam resgatar os corpos feridos ou os mortos, outros saíam para atacar o inimigo. A barbaridade da guerra não tem ética, deontologia ou moral. Tem sangue nas mãos.

Os alemães, na Primeira Guerra Mundial, pela força dos carros blindados e armados, e pelo uso do gás cloro conseguiram desequilibrar o impasse da Guerra de Trincheiras. Mas já antes sentiam-se as condições de crise de saúde, muito por conta da falta de higiene e da fome, e de sofrimento mental.

Imaginar este cenário, e trazendo-o para os nossos tempos, é pensar sobre o que fazemos uns aos outros, não só com as armas de fogo, mas com outro tipo de tecnologia e comunicação. Quantas perdas mais são precisas? Quantos mais terão de se entrincheirar e serem entrincheirados?

Sabemos que os ataques frontais fracassaram em toda a linha, mesmo com as trincheiras bem protegidas com arame farpado, fossos e muralhas. A eficácia da defesa tornava a todos alvos fáceis a qualquer arma pronta a disparar e o terreno lamacento e esburacado, fazia das trincheiras da frente um lugar de mobilidade sobre de si mesmas. Não avançando sobre o inimigo, o movimento das trincheiras frontais era previsível e resultava sempre em grandes perdas para os atacantes. Ao ler “Foi assim a Guerra de Trincheiras” de Tardi, liguei à conjuntura atual que, por vezes, parece estar em estado de sítio e sem lideranças capazes.

A falta de coordenação e de comunicação, durante os ataques frontais daquela altura, também foram responsáveis pela maior miséria humana: o vazio da morte. Hoje temos humanos que odeiam humanos. Humanos que matam humanos, às vezes os seus. A falta de estratégia das lideranças, a não adaptação aos contextos, com mais do mesmo, levará sempre aos mesmos resultados. Acima de tudo, a falta de confiança em si e nos outros, e a lógica do desgaste (como se isso não atingisse também os donos desta lógica), fez de nós os entrincheirados de lideranças de insucessos.