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Crónicas

Os quarenta e quatro

Esta semana os meus Pais fizeram 44 anos de casados. Seguimos juntos, continuamos e assim será até ao fim

Num tempo em que o Mundo se divide é cada vez mais difícil ficar junto. Tornámo-nos viciados na liberdade de ir embora, muitas vezes escravos do nosso próprio egoísmo e à mercê de disposições, momentos mais difíceis e atitudes irrefletidas. As relações humanas continuam a ser, a par da saúde um dos maiores mistérios da nossa sociedade, um autêntico mapa do tesouro, um jogo sem livro de instruções. Somos empurrados para o meio delas, crescendo à custa do erro e da experiência, da volatilidade de estados de espíritos e de fases. Só o tempo não volta para trás nem a capacidade de transformarmos o que dele aprendemos para corrigir o que não estava certo. Sobra-nos a possibilidade de escolha (quando a temos), entre o ir ou ficar, o largar ou agarrar. E a aparente igualdade permite-nos lutar contra injustiças mas também dobrar a probabilidade de nos separarmos, de algo nos fazer confusão ou simplesmente de alguém não querer. A vida é por isso mais do que nunca um labirinto de oportunidades e desafios, uma única folha em branco sem borracha ou corretor. Tudo vai deixando marcas e tudo nos constrói para qualquer coisa em que nos acabamos por tornar mesmo que dela dependa a perspectiva de cada um.

É nesse caminho às escuras que vamos encontrando a luz que nos ilumina e mil e uma outras que se vão apagando. Entre holofotes e noites sombrias, manhãs solarengas e tranquilas ou tardes cinzentas, carregadas de chuva e maus pensamentos. Se ainda há quem acredite que existem seres de outros planetas que em determinado momento nos quererão invadir, imaginem uma discussão de um casal para entenderem que jamais alguém se quererá vir por aqui meter. Das traições aos abandonos, dos maus tratos à violência psicológica, cortes que ferem mais do que um sabre afiado, feridas que demoram mais a sarar que um buraco profundo na pele. E a estrada que vai da satisfação à decepção por vezes é tão pequenina que um coração mais acelerado a percorre num instante. E sem nos apercebermos estamos ali, perdidos do mundo e de tudo o que damos por adquirido, perdidos de nós próprios e do que achámos que podia ser. Quando o chão desaparece e os lados são um imenso infinito de nada, onde não descortinamos um mínimo vislumbre de futuro, de presente… Perde-se o sentido da nossa existência, a razão para acreditarmos que não foi aquele quadro que tínhamos na cabeça quando o começámos a desenhar.

Mas do outro lado há o amor. Com ele tudo que temos de melhor, das sensações aos sentimentos, das atitudes ao pensamento. O que nos une, o que nos faz superar, que nos eleva e nos transcende. Na companhia do que é bom, dos que nos tornam melhores. Na cumplicidade que descobre espaços só nossos, momentos que valem a pena, pessoas que ficam e que nos fazem entender melhor os erros do passado. É na magia do que descobrimos e da força com que lutamos que se faz o lado “B”om da vida. Sem perfeições que isso é coisa que não existe. Com uma boa dose de realismo e muita vontade de fazer valer a pena. Nem sempre é fácil, nem tudo é simples mas é tão melhor vivê-lo juntos que mesmo depois de várias péssimas experiências continuamos a tentar, continuamos a acreditar. E é nele que vamos encontrando o nosso porto seguro, é nos momentos mais pequenos e (aparentemente) mais insignificantes que vamos entendendo a nossa casa e construindo a nossa família, o nosso circulo sagrado. Nele nos envolvemos e nos deixamos levar e a ele procuramos mesmo inconscientemente.

Quando os exemplos que mais vemos são pouco entusiasmantes para o que há-de vir, que nos sobrem os que perduram, entre ventos e marés e resistem à erosão do dia a dia. Esta semana os meus Pais fizeram 44 anos de casados. Seguimos juntos, continuamos e assim será até ao fim. Não deixará de ser sempre um orgulho termos chegado até aqui. Que a vida nos permita continuar esse prazer de nos juntarmos a uma mesa ou de partilharmos o silêncio ao final do dia em frente a uma lareira qualquer.