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Crónicas

O lince e o Prémio do Click

1. O voto de pesar pela morte do lince, aprovado na ALRAM pelo PS e pelo PAN, com a abstenção do PSD, JPP, CHEGA e CDS, e com o voto contra da Iniciativa Liberal, não é apenas inútil — é insultuoso. Insulta a inteligência dos cidadãos que esperam que o Parlamento Regional tome decisões sérias e eficazes, e desrespeita a memória do próprio lince, que pereceu à mercê de um sistema incapaz de o proteger. Ao invés de legislarmos para prevenir novos casos como este, preferimos envolver-nos em discursos vazios e em gestos simbólicos que apenas servem para alimentar uma sensação de dever cumprido, quando, na verdade, falhámos redondamente.

É inadmissível que um episódio marcado pela incompetência e pelo desleixo seja resolvido com um simples pedaço de papel. Estamos a fazer pouco, muito pouco, apesar das responsabilidades que nos foram confiadas. Enquanto nos dedicamos a redigir votos de pesar sem sentido sobre este assunto, os problemas reais, como o tráfico de animais, a má gestão das autoridades e a falta de políticas de conservação eficazes, continuam a ser ignorados. A Assembleia Regional parece mais interessada em maquilhar a sua inércia do que em enfrentar os desafios com seriedade e coragem.

O que foi aprovado é uma verdadeira farsa. Um teatro político vergonhoso que revela o estado lastimável em que a Assembleia se encontra. Um voto de pesar não salva animais, não combate o tráfico ilegal, não protege as espécies em risco.

O Parlamento, ao aprovar este voto, demonstrou que prefere fingir que a fazer alguma coisa, ao invés de enfrentar realmente os problemas de frente. Na passada semana foi enterrado mais do que um lince — enterrou-se a dignidade da Assembleia, que trocou a acção por palavras ocas, aprovando um gesto simbólico que não serve de nada e que só reforça uma total desconexão com a realidade.

2. O capitalismo não é um mal. Tem é aqueles que dele se apoderam e tentam fazer pela vida, achando que o dinheiro tudo paga. O capitalismo é o sistema que permitiu à humanidade sair das cavernas e de mercados de troca de ovelhas por grãos, para um mundo onde podemos comprar qualquer coisa, até reconhecimento. Mas é precisamente essa parte que me faz rir (ou chorar, dependendo do dia): a ideia de que tudo pode ser transformado em produto ou serviço, até a própria validação.

O capitalismo tem a ver com escolhas, com liberdade de fazer e criar. Não há nada de errado nisso. Na verdade, muitos dos avanços que melhoraram a vida das pessoas nasceram de iniciativas privadas e concorrência. Foi a partir destas que hoje se vive no mundo o período onde há menos pobreza desde sempre.

A estupidez disto tudo é quando levamos isso ao extremo e começamos a transformar coisas como prémios de mérito em algo que se pode comprar. A ironia está em vender a ilusão de que celebramos a excelência, quando, na verdade, estamos apenas a celebrar quem pode pagar para aparecer na festa.

O capitalismo, em si, não é o problema. O problema é como alguns o utilizam. O verdadeiro espírito do capitalismo é a inovação, a criação de valor real. Mas, quando começamos a confundir valor com etiquetas de preço, aí é que as coisas ficam complicadas.

3. Chegamos a esta altura do ano e lá temos de levar com os World Travel Awards, um prémio para encher os olhos dos nossos governantes e afagar o ego de quem “acha” que está perante uma grande coisa.

Tenham presente que este prémio só funciona para aqueles que estão dispostas a pagar o preço certo. É verdade, aqui está como funciona: preenche-se um formulário “online” — porque tudo começa sempre com um formulário — e depois os donos do prémio dão uma olhadela na candidatura. Mas calma, não falamos de talento ou mérito. Estão apenas a ver se somos bons o suficiente para pagar-lhes umas centenas de libras. Sim, porque para concorrer a este “prestigiado” prémio, têm de se desembolsar £399, ou, se quisermos impressionar ainda mais, £499. O doce som do dinheiro disfarçado de mérito.

E se não passar na triagem? Óptima notícia: não é preciso pagar. Que gente tão generosa, não é? Mas se tivermos sorte (ou, mais provavelmente, o cartão de crédito certo), receberemos o “privilégio” de pagar e assim sermos aceites. E não se ficam por aqui. Em troca da “doação”, vão enviar um tal de fabuloso “Digital Nominee Pack”, um monte de lixo digital que inclui um escudo de nomeado, um certificado, e umas porcarias de botões e “banners” para pedir votos. Porque, claro, neste mundo, nada demonstra tão bem “excelência” como implorar por votos numa página “web”.

Um verdadeiro prémio onde se contratam então “click farms” onde uns quantos agarrados ao ecrã passam o dia a clicar para dar votos e assim justificar o investimento.

Mas aqui está o melhor: podemos fazer tudo isto, pagar e receber o tal brinquedo digital, mas não se pode contar nada a ninguém. Depois da participação ser paga é decretado um “embargo”. Quem pagou nem sequer pode dizer que participa no concurso até a organização dizer que o podem fazer. Paga e cala-te. Só quando a cortina cair, aí, sim, podem começar a gritar aos quatro ventos que foram nomeados, mas nunca revelando que o foram porque pagaram para isso. Porque não há nada que grite prestígio como pagar para entrar nesta festa.

No fundo, o verdadeiro prémio não é o reconhecimento pela qualidade ou pelo mérito. O verdadeiro prémio é descobrir até onde alguém consegue ir para ser nomeado — e quanto está disposto a pagar por isso.

4. Ora então a Madeira é nomeada para uma série de categorias de prémios e quem escolhe onde se inscreve… é a própria Secretaria do Turismo, que é quem paga? Que truque fantástico. É como eu inventar o “Prémio Morna de Sarcasmo do Ano” e, surpresa das surpresas, o vencedor ser eu. Nada como pagar para participar. Uma espécie de “utilizador/pagador”. Está certo.

“Melhor Destino de Aventura”. Porque não há aventura maior do que visitar a Madeira depois dos fogos de Agosto. Quem não adoraria partir à descoberta de montes e florestas… queimadas? A verdadeira emoção é ver o que resta depois do inferno das chamas. Nada canta “aventura” como caminhar por paisagens carbonizadas, a tentar adivinhar onde costumavam estar as árvores. Cada vereda é uma incógnita.

E se preferirem uma aventura mais “urbana”, não se preocupem. Podem sempre se aventurar em sítios turísticos cheios de gente, onde a verdadeira missão é tentar ver alguma coisa entre as cabeças dos outros milhares de turistas com telemóveis no ar. Uma foto das famosas levadas? Boa sorte. Portanto, se procuram uma “aventura” digna desse nome, a Madeira tem tudo: fogos, multidões e a constante possibilidade de ficar sem ver nada… mas pelo menos ganhamos prémios por isso, certo?

E o “Melhor Destino de Festivais e Eventos”? Claro, a Madeira no seu melhor, com uma festa para cada coisa que nasce de uma árvore ou vem debaixo da terra. Vamos lá ver: temos a Festa da Anona, porque, obviamente, a anona é a verdadeira estrela do espetáculo. A sério, se há coisa que merece uma festa, é uma fruta que a maioria dos que nos visitam nem sabe bem o que é. E que dizer da Festa do Mango? Um evento vibrante, onde o mango é rei… Pura magia.

Mas não fiquemos por aqui, porque a Madeira não desilude. Temos a imperdível Festa do Chícharo — sim, leram bem, chícharo. Para quem não sabe, é um primo da ervilha, e aparentemente merece uma celebração de nível olímpico. Já que estamos nisto, também há a Festa do Pêro! Porque, claro, uma maçã pequena também precisa de um palco e música pimba em altos berros.

E não podemos esquecer a Festa do Vinho, porque quando não há mais nada para celebrar, abrimos uma garrafa e fingimos que a cultura está no copo. Junte-se a Festa da Flor, que, verdade seja dita, até é gira, mas rapidamente descamba para um desfile de carros alegóricos e gente a atirar pétalas como se fossem confetes de casamento. E nem falo do Carnaval, onde mostramos ao mundo que quem inventou o samba fomos nós. E o arroz de lapas, mas isso é outra história.

Festas de todos os tipos e tamanhos, onde a cultura se confunde com entretenimento, e o entretenimento… é pimba. Porque nada diz “experiência cultural autêntica” como ouvir Quim Barreiros entre um “stand” de venda de farturas e uma barraquinha a tentar empurrar uma poncha a 5 euros. É este o espírito dos grandes eventos. Vamos lá, Madeira, continuem a somar prémios. Afinal, quem precisa de Coachella quando se tem a Festa da Cebola?

“Melhor Destino de Praia”? Só se for no Porto Santo. É que as outras são aquelas magníficas praias de… calhau. Atenção que sou daqueles que gostam mais dessas do que as de areia. Se há coisa que a Madeira oferece em abundância, é calhau. Nada como uma boa sessão de malabarismo para equilibrar o corpo enquanto nos tentamos deitar confortavelmente sobre uma pedra do tamanho de uma bola de bólingue. Uma maravilha para quem tem aspirações de se juntar ao Cirque du Soleil. Cada vez que nos mexemos, é uma massagem grátis às costas… com pedras vulcânicas. Pacote completo.

E finalmente, o clássico: “Melhor Entidade de Turismo” vai para… a Associação de Promoção da Madeira. Claro. A entidade que paga a candidatura ganha o prémio por ser a melhor a promover-se a si própria. Um ciclo perfeito. Inventa-se um prémio, faz-se a inscrição, paga-se e ganha-se. É como um jantar sozinho em casa, onde nós nos servimos e, no fim, damo-nos os parabéns pelo excelente serviço.

Portanto, parabéns à Madeira, que ganha prémios por ser… a Madeira. Tudo graças a quem? A eles mesmos! Os de sempre…