Alienação inquietante
Numa Região a precisar de talento, força-se a mediocridade. O resultado é óbvio
Não será construído qualquer parque de estacionamento subterrâneo na Praça do Município do Funchal e, de repente, parece que o previsível parecer negativo da Direcção Regional de Cultura deixou o mundo melhor e resolveu os problemas ancestrais de uma sociedade acomodada. Um exemplo a juntar a tantos outros em que notamos um inquietante desfasamento da realidade por parte de eleitos e de eleitores, gestores de egos que decidem subverter o que é mais importante. Como se não houvesse amanhã. Como se todos os cidadãos estivessem anestesiados e incapazes de compreender o que realmente move uma classe à deriva. Como se os interesses colectivos deixassem de fazer sentido.
Numa Região em que muitas famílias não sabem o que lhes espera, os votos de pesar sobre linces e porventura futuras vítimas dos raticidas, os debates inflamados sobre as casas de banho neutras nas escolas ou impróprias para consumo nas serras, e os comunicados partidários para mostrar serviço a custo zero configuram um ridículo atroz.
Numa Região em que a renda de casas quase duplicou em quatro anos e em que é preciso dar de entrada 66.632 euros para ter habitação própria, são poucos os que discutem melhores salários, direito a casa condigna e o cerco à especulação imobiliária.
Numa Região em que se cultiva a qualidade de vida, permite-se o ruído ensurdecedor, ora pela falta dos sonómetros da PSP, ‘encostados à berma’ para serem calibrados, ora por não haver coragem por parte dos que não se responsabilizam pelos efeitos de uma animação nocturna tardia e nem sempre policiada.
Num Região envolvida num contexto que aconselha recato e tento na língua, alimenta-se a intriga e produz-se o disparate que mancha o bom nome e reputação da ilha.
Numa Região em que muito se reclamou do urgente rejuvenescimento do turismo, por sinal, bem visível depois da pandemia, discute-se agora a necessidade do impensável regresso ao passado porque as actividades e a borga ocupam em demasia o território, atentam contra o pudor e deram cabo do sossego. Tiros nos pés com base em palpites e achismos, sem estudos, nem contexto, num sector com elevada tendência suicidária como se houvesse alternativa rentável à mão de semear.
Numa Região em que importa erradicar a mediocridade, fomenta-se a delinquência que vai relegar para segundo plano quem tem mérito e talento, mas que nada quer ter a ver com favores, suspeitas e escutas. E assim, talvez porque nunca houve alternância de poder no executivo madeirense, o abominável expediente tende a assumir-se como a única forma de forçar a alternância.
Numa Região em que muitos deviam pautar a postura pública pelo rigor e pela transparência, reina a hipocrisia e a cobardia, seja em forma de denúncia anónima, queixinhas e inveja, ou por via do julgamento precipitado, do preconceito provinciano ou do reles ajuste de contas.
Numa Região que devia debater o futuro sem dramas e chegar a consensos sem complexos, a racionalidade política foi leiloada. Rendeu-se ao espalhafato e ao ruído, motivos de gozo nacional, como ilustra bem Ricardo Araújo Pereira no episódio denominado “Estruma-direita: o momento em que os dirigentes do Chega-Madeira debatem sobre… saneamento?”.
Assim vai a Região Autónoma da alienação, em que muitos insistem em colocar na agenda mediática aquilo que pode render votos a qualquer preço, mesmo que nada tenha de útil para as populações.