Ação afirmativa? Discriminação positiva?
Terminou, no sábado passado, a 21.ª edição dum dos maiores concursos do mundo para pianistas, na cidade de Leeds, na Inglaterra, com o prémio principal de 30 mil libras. É um concurso que iniciou, ou consagrou, o estatuto mundial de muitos dos pianistas nele premiados e, sobretudo, dos vencedores. Entre estes últimos, o vencedor em 1990, o pianista português Artur Pizarro, frequentemente presente no palco do nosso Teatro Municipal, sobretudo por convite da Associação Amigos do Conservatório de Música da Madeira. Também merece destaque o pianista ucraniano Dmytro Choni, que, em 2021, ganhou o 4.º prémio neste concurso e que se apresentou na Madeira no âmbito do Madeira PianoFest em 2019, enquanto vencedor dum outro grande concurso, em Santander.
Já nesta última edição do Leeds International Piano Competition, o jovem pianista canadiano Jaeden Izik-Dzurko, que também se apresentou na Madeira, no Madeira PianoFest do ano passado, e também enquanto vencedor em Santander, acabou por arrecadar o primeiro prémio. O facto de ter sido possível trazer todos estes ilustres pianistas, detentores de prémios determinantes para as suas carreiras, para regalarem o público madeirense com as suas exímias interpretações do repertório pianístico é, certamente, um motivo de satisfação para a AACMM.
Mas tudo isso foi só para dar enquadramento a um aspeto deveras singular desta última edição do concurso em Leeds. Começando com 65 pianistas pré-selecionados, foram escolhidos 10 pianistas de 7 países para a meia-final do concurso, e destes, 5 pianistas para a final com orquestra. Na meia-final, 3 dos pianistas eram mulheres, e 2 delas chegaram à final. É neste momento desconhecido até que ponto esta distribuição entre os sexos se deveu a dois artigos muito particulares que apareceram no regulamento desta edição do concurso. O primeiro diz: “Se existirem dois candidatos com pontuação igual, e se estão competir para um lugar, os jurados são solicitados para considerar a possibilidade de avançar o candidato de sexo feminino”. E o outro: “No caso de os resultados duma fase incidirem em concorrentes dum sexo só [leia-se: masculino] ou se os resultados reduzem significativamente a proporção de mulheres em comparação com os homens, será efetuado um novo voto para todos os lugares”.
Este tratamento preferencial tem por objetivo “lidar com o domínio masculino”, conforme o regulamento. Ademais, os membros do júri foram obrigados a frequentar uma formação com o objetivo de eliminar os preconceitos conscientes ou subconscientes, de modo a promover um meio ambiente mais igualitário.
A diretora executiva do concurso comprometeu-se, num artigo publicado em março, de “modelar um palco mais equitativo” e o concurso pretende agora “abordar o assunto existente de longa data do domínio masculino no mundo pianístico”. Ela apontou para o facto de, nas duas últimas décadas, apenas duas mulheres terem vencido o primeiro prémio, de apenas um terço de concorrentes iniciais terem sido mulheres e de, em termos globais, nos 40 mais importantes concursos no mundo, num terço deles na final encontravam-se só homens e apenas 18% foram ganhos por mulheres. Curiosamente, nos concursos de violinistas, 75% foram ganhos por mulheres. Porque será? Na idade infantil, até costuma haver mais meninas a aprenderem piano do que meninos. Mas menos de 23% dos pianistas com carreira significativa são mulheres. Confrontada com estes dados, a maioria dos líderes na área da música clássica respondia com um perplexo “é mesmo?”.
A disparidade de género pode ser involuntária, mas ao longo do tempo acumula e torna-se enraizada. Quaisquer tentativas de explicar essa disparidade recorrendo a argumentos tais como as predisposições da forma física, expectativas sociais e até a vontade de ter uma família evitam identificar a existência de preconceitos, meritocracia individual e ausência de modelos mais diversificados.
Daí, a introdução de pré-seleções sem identificação visual e acesso minimizado às informações biográficas dos candidatos (tal como hoje em dia se costuma fazer nas seleções para orquestras) são um passo importante. Os resultados deste tipo de iniciativas proativas também já estão a dar frutos e a equilibrar o universo dos maestros das orquestras.
Eliminar os preconceitos, sim. Mas, se, além disso, o caminho certo deveria passar por discriminação positiva e pela repetição das votações, consagradas nos regulamentos – só o tempo dirá.