DNOTICIAS.PT
Crónicas

Fanal, “Ab Initio” e Schrödinger

1. O Decreto Regional n.º 14/82/M criou o Parque Natural da Madeira (PNM) que integra a zona do Fanal. Esta estrutura regional procurava “realizar um planeamento científico a longo prazo, valorizando o homem e os recursos naturais existentes”.

As declarações da Secretária Regional da Agricultura, Pescas e Ambiente, Rafaela Fernandes, que tem entre as suas responsabilidades zelar pela lei, revelam incongruências significativas, especialmente no que respeita à autorização e condução de eventos em zonas protegidas, como o Fanal.

O Decreto estabelece zonas no PNM com diferentes níveis de protecção, incluindo áreas de “reserva integral” e “zona de repouso e silêncio”, onde o uso humano e a intervenção são extremamente limitados. O Fanal, especificamente mencionado no decreto como uma zona de repouso e silêncio, está destinado a ser um local de recreio condicionado e repouso, onde o acesso a veículos é restrito e o ambiente deve ser preservado para minimizar qualquer poluição sonora ou outro impacto. A Sr.ᵃ Secretária, no entanto, justifica a realização do evento no parque de estacionamento do Fanal, destacando o uso de uma estrutura removível. Mesmo que o evento tenha ocorrido numa área designada como de “estacionamento”, a presença de uma estrutura para um evento de casamento contradiz os princípios de “recreio condicionado” e “repouso” estipulados no decreto. Este tipo de evento parece, por natureza, disruptivo do equilíbrio ecológico e da função da zona, conforme delineado no documento, considerando especialmente o aumento de tráfego, ruído e alterações temporárias no espaço natural.

Rafaela Fernandes, replica a voz do dono, e insiste que o evento foi autorizado e realizado com o “mínimo impacto possível”. No entanto, o decreto estabelece que estas zonas têm uma gestão bastante rígida para evitar qualquer tipo de poluição sonora ou outra. A colocação de uma tenda e o atraso na limpeza do espaço sugerem que houve uma intervenção maior do que o esperado para um evento de “impacto mínimo”. Este tipo de justificação subestima o rigor das restrições que o decreto impõe.

No contexto de uma reserva natural, especialmente uma zona de silêncio e repouso, os menores distúrbios podem ser significativos.

A Secretária defende que o evento seguiu os “procedimentos normais de autorização” e foi “organizado de forma a minimizar” transtornos para os outros utilizadores do espaço. No entanto, o decreto é explícito ao atribuir à direcção do parque o poder de autorizar ou não eventos que possam afectar o ambiente, especialmente em zonas sensíveis. A gestão do parque, segundo o decreto, deve assegurar que o uso de áreas protegidas não comprometa o equilíbrio ecológico e o respeito pelas tradições culturais das populações. Embora a Secretária insista que a serra pertence aos madeirenses, o decreto estabelece que o uso dessas áreas deve ser gerido de maneira que respeite os valores ambientais e o uso comum de todos, e não de forma a acomodar eventos particulares que podem não estar alinhados com os objectivos de conservação.

Rafaela Fernandes faz ainda uma analogia entre filmagens de filmes, que já foram permitidas na serra, e eventos particulares, como o casamento. Esta comparação não faz sentido nenhum. Filmagens podem ser controladas de forma estrita e, em muitos casos, envolvem medidas de mitigação e compensação, previamente acordadas com as autoridades. No entanto, eventos privados, como casamentos, com grandes volumes de convidados e estruturas temporárias, representam um tipo de uso significativamente diferente.

A Secretária menciona que os madeirenses têm o direito de usufruir do seu “património colectivo”, o que é verdade, mas o decreto sublinha que o uso dessas áreas deve ser feito conforme a protecção ambiental e a preservação do património natural. A autorização a este evento levanta questões sobre o equilíbrio entre o uso privado e a conservação de um espaço colectivo de grande valor ambiental.

Ao arrepio da lei, serviços pelos quais Rafaela Fernandes é responsável, autorizaram o que não deviam ter autorizado. Quem assumirá a responsabilidade por esta ilegalidade?

2. Miguel Albuquerque também proferiu declarações lamentáveis sobre este assunto, revelando uma ignorância chocante sobre a importância e a fragilidade das áreas protegidas, especialmente de um Património Mundial como a Laurissilva. Ao afirmar que não vê problemas na realização de festas numa área sensível como o Fanal, desde que se “respeitem as regras de comportamento” e “seja tudo deixado limpo”, Albuquerque demonstra uma profunda falta de compreensão sobre o que significa preservar um ecossistema frágil. Os ciclos naturais são interrompidos, e o solo, que demora séculos a recuperar, é compactado, afectando o equilíbrio do ecossistema. A insensatez de Miguel Albuquerque ao minimizar esses factos é, francamente, alarmante. Mas a isto já estamos mais do que habituados, não é?

3. Os processos judiciais relacionados com a operação “Ab Initio” revelam um denominador comum a outros processos que ainda decorrem: o PSD Madeira. Também esta investigação envolve figuras de destaque em cargos regionais, partidários e autárquicos e a aparente promiscuidade com algum tecido empresarial. É crucial permitir que a justiça siga o seu curso sem interferências externas ou julgamentos precipitados. As conclusões devem ser retiradas com base em processos legais rigorosos e transparentes, assegurando que a justiça é feita de forma imparcial e independente, sem influências políticas.

Deixemos a justiça funcionar sem que isso nos impeça de pensar que estamos constantemente a bater no fundo do fundo.

4. O turista é uma figura paradoxal, uma presença ao mesmo tempo, desejada e temida. É, por definição, um visitante, alguém que vem de fora, trazendo consigo a promessa de novidade, de consumo, e, em muitos casos, a revitalização económica de um lugar. No entanto, há uma linha ténue entre o turista ser benéfico e tornar-se um peso.

O turista é como o gato de Schrödinger: ele é bom e mau ao mesmo tempo, uma figura que existe simultaneamente em estados opostos, dependendo de como é observado. Enquanto está no seu estado “bom”, o turista traz riqueza, dinamismo cultural e uma certa magia do exotismo ao lugar que visita. Aprecia a cultura local, consome produtos e serviços, e espalha a palavra sobre a beleza e as singularidades do destino.

Porém, esse mesmo turista, ao cruzar uma determinada linha invisível, pode rapidamente transformar-se numa carga. Quando em número excessivo, dilui a autenticidade do local, transforma a cultura em mercadoria e o ambiente num parque temático. O encanto perde-se, e o que era um destino de sonho pode transformar-se num pesadelo de superlotação, lixo e desrespeito.

O turista de Schrödinger, então, é aquele que está constantemente à beira de se tornar um visitante bem-vindo ou uma ameaça à essência do lugar. O seu impacto é uma equação complexa que depende não apenas da sua própria conduta, mas também da capacidade do lugar de absorver e lidar com a presença externa sem perder a sua alma. Assim, o turista é bom até que deixa de o ser, um ser que navega entre o benefício e o prejuízo, sem nunca realmente se fixar num desses estados até que seja observado, avaliado e compreendido em toda a sua complexidade.

5. Aquela frase: “É a minha opinião e vale o que vale”, faz sempre tocar sinos cá dentro. O que isso realmente significa? Significa que quem o diz “acha” que o seu pensamento é como uma pepita de ouro num monte de estrume. Atiram com a expressão como se nos estivessem a fazer um favor, como se estivéssemos ansiosos por ouvir mais uma pérola de sabedoria divina que brotou de tão estuda cabeça.

Não se enganem, esta frase tem um subtexto poderoso. Quando alguém diz “a minha opinião vale o que vale”, o que realmente tentam dizer é: “Eu tenho razão, e tu és burro e não consegues perceber”. É uma manifestação pura e cristalina de um enorme complexo de superioridade. Porque sabem que a sua opinião é tão inútil quanto tentar apagar fogo com gasolina, mas querem que a tratemos como se fosse uma obra-prima.

Na verdade, são mesmo opiniões que não valem nada. Mas, claro, acham que estão acima de qualquer avaliação. E dizem-no como se estivessem imunes a críticas, como se a sua opinião estivesse protegida por um escudo invisível de arrogância intelectual, como se após proferirem tão profunda afirmação o assunto estivesse encerrado. No fundo, quem diz “a minha opinião vale o que vale” quer mesmo que a sua opinião valha mais do que a outra, que com ela sejam o juiz, o júri e a maldita execução do debate.

Da próxima vez que alguém vos vier com essa ladainha, façam-lhes um favor: concordem efusivamente. Digam-lhes que, de facto, a opinião deles vale o que vale. A verdade é que se essas opiniões fossem moedas, estaríamos falidos. No mercado de opiniões medíocres, estão permanentemente em saldos. Sorriam e sigam em frente — a vossa vida tem mais valor do que perder tempo a ouvir o eco do vazio.