Biomassa
1. A intromissão do poder político nas decisões dos especialistas é uma das manifestações mais preocupantes de socialismo e de estatismo na nossa sociedade. Não tenho nenhuma dúvida de que foi isso que aconteceu na gestão dos incêndios.
Quando políticos, movidos por pela ânsia de tudo controlar, se sobrepõem ao conhecimento técnico e à perícia dos profissionais, estamos perante um claro sinal de autoritarismo disfarçado sob o manto do bem comum. E isto notou-se inúmeras vezes nas contradições que se foram verificaram entre os protagonistas.
Esta interferência não só desrespeita a autonomia dos especialistas, como também mina a qualidade das decisões, que deveriam ser guiadas pela ciência e pelo conhecimento especializado, e não por agendas políticas e achismos.
No âmago desta prática está a visão socialista e estatista de que o Estado deve ser o árbitro supremo em todas as esferas da vida pública, incluindo aquelas que exigem alto grau de especialização. O socialismo, com a sua tendência inerente para o controlo centralizado, vê a substituição do julgamento dos especialistas pelo controlo estatal como uma ferramenta legítima para alcançar os seus objectivos. Sob esta lógica, o conhecimento científico e técnico é subjugado às necessidades do Estado e dos seus dirigentes, que se coloca como o único detentor da verdade e da capacidade de tomar decisões em nome de todos.
Esta abordagem é perigosa porque distorce o propósito do conhecimento técnico, subordinando-o a uma agenda política que, muitas vezes, ignora as “nuances” e complexidades das questões em debate.
Nunca seremos uma terra de futuro enquanto estas práticas representarem uma ameaça à qualidade das políticas públicas e à própria democracia, que deveria basear-se na pluralidade de ideias e na autonomia dos campos de conhecimento.
2. (Este texto é o resultado de três dias de conversa intensa com vários especialistas. Eu só lhe dei a forma)
Tem se falado muito pouco disto, mas estes incêndios podem desencadear uma série de efeitos secundários devastadores para o ambiente, a economia e a segurança das populações locais. Estes efeitos vão além da destruição imediata da vegetação e incluem fenómenos que perdurarão por muitos anos, dificultando a recuperação da ilha e a sua resiliência a eventos climáticos extremos.
A erosão do solo é um dos primeiros e mais visíveis efeitos secundários destes incêndios. A vegetação desempenha um papel crucial na retenção do solo nas encostas íngremes da ilha. Quando é destruído pelo fogo, o solo fica completamente exposto às forças erosivas das chuvas de inverno. A água da chuva, ao cair sobre o solo nu, arrasta consigo a camada superficial rica em nutrientes, provocando uma degradação significativa da terra. Este processo não só empobrece o solo, tornando-o menos fértil para a regeneração natural das plantas, como também contribui para a sedimentação de cursos de água e levadas.
A Madeira, devido ao seu relevo acentuado e à natureza friável dos seus solos vulcânicos, é especialmente vulnerável a desabamentos. A vegetação natural, com as suas raízes, ajuda a estabilizar o solo, prevenindo o deslizamento das encostas resultando nas aluviões de tão triste memória. Estes desabamentos podem causar danos significativos em infraestruturas, como estradas e habitações, e representam uma séria ameaça à segurança dos madeirenses.
A vegetação desempenha também um papel fundamental na regulação do ciclo da água. As árvores e outras plantas ajudam a absorver e a retardar o escoamento da água da chuva. Quando esta vegetação é destruída pelo fogo, o solo perde grande parte da capacidade de absorção, resultando num aumento do escoamento superficial.
Outro efeito secundário preocupante é o assoreamento das ribeiras. O material erodido das encostas queimadas, como cinzas e sedimentos, é frequentemente transportado pela água da chuva para os cursos de água. Este processo de assoreamento reduz a capacidade destes sistemas de escoamento, aumentando o risco de inundações. Além disso, afecta negativamente a qualidade da água, prejudicando o abastecimento para consumo humano e a irrigação agrícola.
Na Madeira, onde as levadas são vitais para a distribuição de água por toda a ilha, as cinzas e outros resíduos resultantes dos incêndios vão contaminar os cursos de água, introduzindo uma carga significativa de poluentes nas bacias hidrográficas. A água da chuva, ao escoar pelas áreas queimadas, transportará contaminantes para as ribeiras, levadas e reservatórios de água potável. Esta contaminação não só afeta a qualidade da água disponível para consumo humano, mas também terá impactos adversos na fauna aquática e na biodiversidade local. Além disso, a limpeza e a manutenção das levadas e dos sistemas de abastecimento de água tornam-se mais difíceis e dispendiosas.
Após os incêndios, as áreas queimadas são colonizadas por espécies invasoras, como as acácias, que se adaptam rapidamente às condições pós-incêndio. Estas plantas crescem mais rapidamente do que a vegetação nativa. A proliferação de espécies invasoras dificultará a recuperação do ecossistema, competindo por recursos e espaço com as plantas autóctones. Na Madeira, onde a biodiversidade endémica é um património valioso, a invasão de espécies exóticas representa uma ameaça séria à conservação dos ecossistemas únicos do arquipélago.
Assim, não é difícil entender que a recuperação das áreas afectadas por incêndios na Madeira é um processo complexo e demorado. É necessário implementar programas de reflorestação que privilegiem a vegetação nativa, bem como medidas de controlo de espécies invasoras. A estabilização das encostas e a prevenção de desabamentos de terra e inundações devem ser prioridades para evitar que os efeitos secundários dos incêndios de verão comprometam a segurança, o ambiente e a economia da Madeira durante os meses de inverno.
Depois do fogo temos muito, mas mesmo muito trabalho pela frente e urge tomar medidas sérias e capazes que resultem em antecipação e evitem a reacção.
3. O atraso na implementação de uma central de biomassa na Região Autónoma da Madeira (RAM) tem sido um factor crítico que contribui para o aumento da vulnerabilidade da ilha aos incêndios florestais. A Madeira, com o seu vasto potencial para a produção de energia a partir de biomassa florestal, poderia ter usado este recurso para não apenas reduzir a dependência energética de combustíveis fósseis, mas também para mitigar os riscos associados à acumulação de biomassa nas florestas, que frequentemente alimenta incêndios devastadores.
Aqui há uns anos, o Governo Regional, através da empresa Águas e Resíduos da Madeira (ARM), tomou a iniciativa de avançar com a construção da tão necessária Central de Biomassa. A candidatura para este projeto foi feita ao POSEUR — Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos —, com um investimento total estimado em 4 milhões de euros. A central de biomassa, como projetada pelo governo regional, não apenas ajudaria a prevenir incêndios florestais, mas também promoveria a segurança da população e a gestão sustentável da floresta. A central seria dimensionada para atender às especificidades da realidade local, com um modelo que incluía a compensação financeira para aqueles que entregam resíduos florestais resultantes da limpeza dos seus terrenos. Este era um passo crucial para transformar um risco ambiental numa oportunidade para a produção de energia renovável, contribuindo assim para a proteção dos ecossistemas naturais contra o fogo, reduzindo os custos de combate a incêndios e os custos associados à limpeza e reflorestação pós-incêndios.
Além dos benefícios diretos, o projeto da central de biomassa também traria vantagens indiretas significativas. Entre elas, destaca-se a manutenção dos serviços de ecossistema, a diminuição da erosão do solo e do perigo de aluvião, e a valorização da paisagem e do destino turístico da Madeira. A instalação desta central era, portanto, uma medida de gestão e tratamento adequado dos resíduos florestais, que não só ajudaria a preservar a beleza natural da ilha, mas também reforça a resiliência ambiental da Madeira e diminuiria o risco de incêndios.
E, de repente, perdendo o acesso a fundos comunitários já consignados, a ideia caiu por terra. Não se sabe o porquê e suspeita-se por quem.
É fundamental reconhecer que a decisão de avançar com este projeto, apesar de positiva, já, em 2021, vinha atrasada. Anos de inação permitiram que os resíduos florestais se acumulassem, exacerbando os riscos de incêndio e deixando a população e o meio ambiente expostos a perigos evitáveis. A central de biomassa poderia ter sido uma realidade há mais tempo, contribuindo para uma Madeira mais sustentável e segura.
Havia a esperança de que, com a implementação da central de biomassa, se pudesse reverter parte dos danos causados pela inércia e estabelecer um novo padrão de gestão ambiental e energética na região.
Construir a central de biomassa continua a ser um passo necessário e bem-vindo, que deve ser acompanhado por um compromisso contínuo de gestão florestal sustentável e prevenção de incêndios. A central representará não apenas uma fonte de energia renovável, mas também um elemento-chave na estratégia de proteção ambiental, ajudando a garantir que os recursos naturais da Madeira sejam utilizados de forma eficiente e segura, protegendo a paisagem e a população dos impactos devastadores dos incêndios florestais.
É urgente que este projecto, que poderia ter sido representado no âmbito do PRR e não foi, veja a luz do dia. E que se explique porque é que a sua implementação foi travada há quase quatro anos.