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Radiografia a um SNS com dificuldades de acesso e falta de profissionais

Os últimos tempos do SNS têm sido marcados por várias greves dos seus profissionais.
Os últimos tempos do SNS têm sido marcados por várias greves dos seus profissionais., Foto João Relvas/LUSA

Em 45 anos de existência, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) nunca custou tanto dinheiro, cerca de 14 mil milhões de euros para fazer funcionar uma enorme estrutura que integra mais de 150 mil trabalhadores.

Apesar do aumento de financiamento nos últimos anos, este serviço público, que ainda recupera da forte pressão a que foi sujeito pela pandemia da covid-19, enfrenta um diagnóstico reservado em algumas áreas, com os utentes a sentirem dificuldades no acesso aos cuidados de saúde.

O SNS representava aproximadamente 20% do emprego total das administrações públicas no final de 2023, a seguir ao setor da Educação, mas continua a debater-se com a falta de especialistas em áreas-chave, como a obstetrícia, a pediatria e a medicina geral e familiar.

Eis alguns dados que caracterizam o atual SNS, formalmente criado em 15 de setembro de 1979, quando foi publicada a lei que criou o sistema universal de saúde em Portugal.

Um novo estatuto e uma nova organização

Dotado de uma nova Lei de Bases da Saúde e de um novo Estatuto, o SNS tem sofrido recentemente importantes alterações de organização e funcionamento, entre as quais a criação de uma direção executiva, que assumiu a coordenação da resposta assistencial das várias unidades e dos cuidados continuados e paliativos.

Este novo órgão entrou em funcionamento em 01 de janeiro de 2023 e já teve dois diretores-executivos: primeiro o médico Fernando Araújo, que se demitiu já com o atual Governo, e agora o militar António Gandra D´Almeida.

Um ano depois, em janeiro deste ano, entrou em vigor o novo modelo de organização, com o alargamento a todo o país das Unidades Locais de Saúde (ULS), que integraram numa gestão única os hospitais, os centros de saúde e os cuidados continuados de uma determinada área geográfica.

Na prática, foram criadas 31 novas ULS, a somar às oito que já existiam, num total de 39 em Portugal continental, tendo sido extintas as administrações regionais de saúde (ARS).

Os hospitais públicos contribuem para dois terços da capacidade total de internamento do país e foram responsáveis por quase 70% de todas as hospitalizações em 2021, de acordo com um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).

Número de profissionais do SNS

Em junho deste ano, este serviço público tinha ao seu serviço um total de 150.333 trabalhadores, quando em junho de 2019, ainda antes da pandemia da covid-19, eram 130.752, de acordo com o portal da transparência do SNS.

Ou seja, tem hoje quase 20 mil trabalhadores mais do que tinha há cinco anos.

Este crescimento é ainda mais evidente se comparado com 2010, ano em que o SNS tinha pouco mais de 120 mil trabalhadores.

Em junho de 2024, trabalhavam nos hospitais e centros de saúde 21.395 médicos especialistas, mais 2.739 do que no mesmo mês de 2019, a que se somavam quase 11 mil internos, que estavam em formação da especialidade que escolheram.

Já quanto aos enfermeiros - o maior grupo profissional do SNS -, passaram de 43.312 em 2019 para quase 51 mil em junho deste ano, um crescimento que foi ainda registado no número de técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica (8.204 em junho de 2019 e 9.858 em junho de 2024).

De acordo com a OCDE, apesar de um aumento de mais de 15% no número de enfermeiros profissionalmente ativos em Portugal nos últimos anos, em 2021 o rácio era ainda 13% inferior à média da União Europeia, com 7,4 enfermeiros por 1.000 habitantes.

Os mesmos dados indicam que, em 2021, Portugal tinha 5,6 médicos por 1.000 habitantes, superior à maioria dos outros países da UE, mas a OCDE alerta que esses números incluem todos os médicos habilitados, enquanto outros países consideram apenas os médicos em exercício.

Falta de médicos de família

Considerado um dos principais problemas do acesso dos utentes ao SNS, a falta de médicos de família tem vindo a agravar-se nos últimos anos, com o número de pessoas sem um especialista de medicina geral e familiar atribuído a aumentar cerca de um milhão desde 2019.

Segundo os dados do portal da transparência do SNS, em agosto de 2019, 644.077 pessoas não tinham médico de família, número que aumentou para 1.675.663 no último mês, uma diferença de mais 1.031.586 utentes.

Depois de uma redução entre dezembro 2023 e fevereiro deste ano, o número de utentes sem um especialista de medicina geral e familiar voltou a subir nos meses seguintes, um aumento de cerca de 146 mil pessoas até agosto.

Por outro lado, o total de utentes com médico de família atribuído era, no final do último mês, o mais baixo desde 2016 - pouco mais de 8,7 milhões -, quando em agosto de 2019 rondava os 9,6 milhões.

Dados da Ordem dos Médicos indicam que, em maio de 2024, estavam inscritos 9.003 clínicos com a especialidade de medicina geral e familiar, mas 45% (4.115) já tinha mais de 65 anos e 18% mais de 70 anos.

Para minimizar a falta destes especialistas, o Governo aprovou recentemente a criação das Unidades de Saúde Familiar modelo C, que vão ser geridas por autarquias e setores social e privado, com as primeiras 20 a abrirem em Lisboa e Vale do Tejo, Leiria e Algarve, onde se verifica maior falta de médicos de família.

Além disso, no final de junho, o Governo abriu cerca de 900 vagas para medicina geral e familiar, que representam mais 40% do número de recém-formados, com o objetivo captar mais profissionais para os cuidados de saúde primários.

Horas extraordinárias para compensar falta de profissionais

As unidades do SNS gastaram quase 475 milhões de euros com o pagamento de 18,2 milhões de horas extraordinárias em 2023, um valor que aumentou 12,7% em relação a 2022, indicou o Conselho das Finanças Públicas (CFP), num relatório recentemente publicado.

Do volume global de horas de trabalho suplementar no último ano, 39% foi prestado por médicos, incluindo internos, totalizando 7,1 milhões de horas, enquanto os enfermeiros foram responsáveis por assegurar 5,3 milhões de horas extraordinárias.

Por esse trabalho extra, os médicos receberam 323 milhões de euros, enquanto os enfermeiros auferiram quase 90 milhões de euros.

Além disso, foram ainda contratadas 6,1 milhões de horas a prestadores de serviços médicos, a solução a que os hospitais recorrem para colmatar a falta de especialistas, que tem sido responsável pelos constrangimentos de funcionamento e pelo encerramento temporário de algumas urgências de obstetrícia e pediatria.

Quanto custa o SNS?

Com o seu financiamento assegurado pelo Orçamento do Estado, o SNS custou em 2023 cerca de 14 mil milhões de euros, mais 6,8% do que no ano anterior (+ 892,3 ME), indicou o CFP.

A despesa deste serviço público de saúde representou, no último ano, 5,3% do produto interno bruto (PIB) português e 12,5% do total da despesa pública, colocando Portugal como o sexto país da União Europeia que aloca uma maior parcela do seu PIB à saúde.

Em 2023, o SNS registou um défice de 435 milhões de euros, mas esse valor representou uma melhoria de cerca de 631 milhões de euros face a 2022, devido a um aumento da receita superior ao crescimento da despesa.

Já relativamente ao investimento, o CFP alertou que continua a representar uma percentagem diminuta da despesa total do SNS em 2023 (2,6%), refletindo a "baixa prioridade dada" a essa área no SNS nos últimos anos.

No período de 2014 a 2023, o investimento representou, em média, 1,7% da despesa total do SNS.

Apesar deste baixo nível de investimento, a OCDE refere que, nos últimos anos, Portugal investiu na expansão da sua rede de cuidados de saúde primários, o que resultou num aumento de 12% do número total de unidades entre 2011 e 2021.

Um plano com 54 medidas para cinco áreas

Concebido para dar resposta a este diagnóstico, o Governo aprovou, nos primeiros 60 dias de funções, o Plano de Emergência e Transformação da Saúde, composto por 54 medidas definidas como urgentes, prioritárias e estruturantes e que estão divididas por cinco eixos.

Segundo os dados do Governo, o programa de recuperação das listas de espera cirúrgicas de doentes com cancro permitiu, entre 01 de maio e 30 de agosto, realizar 25.800 operações, um crescimento de 15,8% em relação ao ano anterior.

Já a Linha SNS Grávida atendeu, de junho a agosto, 25.718 chamadas. Quase três em cada 10 grávidas que contactaram esse serviço não tiveram necessidade de se deslocar a uma urgência, dando lugar ao atendimento de quase 18 mil casos urgentes, alega o executivo.

Apesar destes dados, o ministério reconheceu que, durante os meses de verão, nem tudo correu bem com as urgências de obstetrícia, que chegaram, no último domingo de agosto, a ter 17 serviços com as portas fechadas.

No início deste mês, a ministra Ana Paula Martins anunciou que foram concretizadas oito das 15 medidas urgentes do plano, estando então seis em curso e uma por iniciar.

Mais produção e mais procura

Depois da prioridade dada ao combate à covid-19 em 2020 e 2021, a atividade assistencial dos hospitais e centros de saúde voltou a aumentar nos últimos anos, mas essa recuperação mostrou-se insuficiente para satisfazer a crescente procura, alertou o CFP.

Em 2023, nos hospitais registou-se um aumento da produção, dando continuidade à tendência de crescimento registada desde 2021.

O número de consultas médicas hospitalares (13,3 milhões) aumentou 3,9% face a 2022. No último ano, foram ainda realizadas 817 mil cirurgias, em comparação com as 759 mil em 2022.

No entanto, o aumento do número de primeiras consultas hospitalares realizadas em 2023 (mais 156 mil face a 2022) não foi suficiente para satisfazer a procura crescente (mais 263 mil pedidos), o que resultou num aumento da lista de espera nesse ano.

O número de utentes em Lista de Inscritos para Cirurgia (LIC) continuou a aumentar para 265 mil, face a 235 mil utentes em 2022.

Além disso, no último ano, os hospitais portugueses registaram um total de 6,1 milhões de atendimentos nas urgências, um elevado número que se tem mantido sem grandes oscilações nos últimos anos e que é responsável pela grande pressão que esses serviços têm enfrentado em determinados períodos do ano.

Quanto aos cuidados primários, em 2023 verificou-se uma diminuição da atividade assistencial, devido a uma redução de 2,5% (-868 mil) consultas médicas face a 2022, que ficou a dever-se ao menor volume de consultas não presenciais (-6,3%), tendo-se registado um ligeiro aumento das consultas presenciais (+0,8%).

Perante estes números, o Governo avançou com programas específicos para recuperação de listas de espera e com a criação de alternativas para diminuir a pressão sobre as urgências, no âmbito do Plano de Emergência e Transformação da Saúde aprovado no final de maio.