O estado a que as coisas do Estado chegaram
O mundo não é perfeito e a tolerância impõe-se nos demais setores da sociedade, incluindo na gestão pública, mas o estado em que as coisas do Estado chegaram não pode ser aceite.
Segundo a Constituição da República Portuguesa, e dentro das oito tarefas fundamentais do Estado, há que “garantir os direitos e liberdades (…)”, “promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses (…)” e “promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, designadamente, o carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira”.
Só pelo passado recente concluímos que o Estado tem fortes lacunas e não tem assegurado essas funções. São muitos os exemplos que afetam o dia a dia dos cidadãos e que só podem gerar frustração, revolta e, em alguns casos, chacota.
Podemos atestar isso pelo que se passou na cadeia de Vale de Judeus, na abertura do ano escolar em que, a nível nacional, faltam professores, na incapacidade da resposta da saúde pública na assistência a grávidas, na impossibilidade da AIMA - Agência para a Integração, Migrações e Asilo responder às solicitações que a lei portuguesa impõe, e na dificuldade de prestação de socorro a doentes no Porto Santo.
Dou estes exemplos, como poderia dar outros. Infelizmente as situações identificadas são apenas a face mais visível de problemas estruturais bem maiores onde nem sempre é o dinheiro que falta. Foram muitos, demasiados anos de inoperância e de falta de rigor e de gestão.
Além do referido, o mundo mudou. E complicou-se muito. As solicitações e expectativas são de maior dimensão, o nível de exigência é superior e as formas de reivindicação e de pressão pública multiplicaram-se.
A assunção de cargos e de funções públicas exige capacidade analítica e de trabalho, coragem, perseverança, humildade e liderança estratégica. São precisos líderes capazes de ver “mais além” de modo a definir para onde se pretende ir do ponto de vista macro e com capacidade de concretizar um ambicioso e inovador plano de ação. Mas, a acompanhar isso, é fundamental que na equipa e nas estruturas intermédias existam pessoas que tratam do quotidiano e do mais comum de modo a satisfazer as necessidades mais básicas das populações. Lamentavelmente, pelo que se vai vendo a nível nacional, o essencial deixou de ser garantido.
O equilíbrio entre a política ‘tout court’ e a gestão diária da coisa pública é difícil. E é tanto mais difícil quanto mais frágil for o governo eleito e mais espalhafatosos forem os partidos com representação parlamentar.
Bem sei que é a democracia a funcionar, mas a verdade é que com a necessidade de mediatização, e em particular de partidos recentes, o número de iniciativas nos parlamentos aumentou tendo o nível de compromisso público disparado sem que houvesse, necessariamente, um maior retorno para a sociedade.
Senão vejamos os fatos: nos trabalhos parlamentares do Orçamento de Estado (OE) de 2012 com seis partidos na Assembleia da República registaram-se 592 propostas de alteração. Para o OE 2023, com oito partidos instalados, deram entrada 1.862. São três vezes mais.
E agora façamos a questão: qual o valor adicional para o cidadão?
Penso que há situações em que se legisla “em cima do joelho” com um pequeno propósito e na prática, se muitas vezes não há capacidade de implementar as decisões, em inúmeras situações é manifesta a falta de meios para fiscalizar.
Em fases de governos minoritários a situação agudiza-se e são muitas as iniciativas em que tendo sido aprovados os diplomas não se aplicam as leis, como por exemplo a revisão do subsídio social de mobilidade da Madeira de 2019. Noutros casos são implementadas medidas que geram um rombo no orçamento tal como sucedeu agora com a aprovação da medida do PS para a isenção das portagens que irá custar 157 milhões de euros.
Assim, desvirtua-se a proposta política e técnica vencedora e, no limite, porque todos mandam na casa, além de ninguém ter razão, não há como imputar responsabilidades.
Ao contrário dos projetos de investimento que são implementados no setor privado em que há uma análise do custo e do retorno, e no qual as exigências e os recursos monetários e humanos são escalpelizados. No sistema público tal não acontece. Por isso, muitas vezes investe-se porque existe a necessidade e o financiamento dos primeiros anos, mas não se tem em conta a manutenção, a depreciação e a reabilitação dos equipamentos e infraestruturas a médio e longo prazo.
O problema é que com o tempo tudo se deteriora, os recursos são finitos e é preciso fazer opções. Espera-se é que nunca sejam postas em causa as funções essenciais do Estado.