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Crónicas

Crescer custa sempre

Eu só queria entrar para a faculdade e ser dona de mim, do meu dia, das minhas decisões

O mundo era um lugar muito diferente quando vi o ‘colocada’ à frente do meu Lina Marta. A lista era afixada numa casa com jardim, ali na Rua dos Ilhéus, um edifício velho com vista para o mar onde os candidatos a estudantes universitários preenchiam os papéis e conheciam os resultados. Eu e os outros 500 que entraram nesse ano esperámos seis meses para saber se íamos ou ficávamos em terra, depois da experiência da prova geral de acesso e de uma greve sem fim dos professores.

Do lado de cá, a muitos quilómetros da guerra que opunha os professores do ensino superior ao Ministério da Educação, eu marcava passo em casa, impaciente com o futuro bloqueado e a injustiça de ter 18 anos e não estar em Lisboa, a debater cinema e literatura num intervalo das aulas, algures numa mesa de café. Era uma imagem, uma fantasia da menina do Laranjal, aquele sítio onde não chegava a iluminação de Natal e de onde eu nunca tinha saído. A minha vida era aquilo: a casa, a família, os cães e a fazenda.

E estava prestes a mudar para sempre, mas isso eu ainda não sabia. De uma certa maneira aqueles meses sem ter o que fazer, a tentar ocupar a cabeça com livros, filmes e com o curso de computadores foram os últimos da adolescência. A minha mãe acordava-me, o pequeno almoço estava na mesa, assim como o almoço, o jantar e o lanche a meio da tarde. O frigorífico enchia-se, a máquina de lavar roupa trabalhava sozinha e eu aborrecia-me por varrer o quintal ao sábado de manhã.

A minha mãe, as minhas tias, o meu pai, os meus primos e o meu tio Humberto - os adultos com quem cresci - puxavam os fios dessa engrenagem que me alimentava, vestia e mantinha uma casa confortável, onde era possível sonhar com mais. Eu só queria entrar para a faculdade e ser dona de mim, do meu dia, das minhas decisões. Lisboa iria mostrar-me quanta solidão, quanto esforço e trabalho são necessários para ser isso e ainda sentir, por cima de tudo, uma saudade que dava a impressão de não caber em mim.

O caminho, o meu caminho, começava ali, na lista de candidatos afixada no alpendre da casa da Rua dos Ilhéus. Lembro-me do coração a bater como se quisesse saltar fora do peito, lembro-me de ter ido ver várias vezes para ter a certeza e de ter telefonado para casa. Eu estava na universidade e pareceu irreal, como foi tudo depois disso. Os papéis para a bolsa de estudo, a mala velha com os cantos comidos, a roupa quente e o bolso escondido para guardar o dinheiro. Lisboa era um ninho de ladrões e mais frio do que o Pólo Norte.

A minha adolescência terminou quando entrei naquele avião da TAP, quando senti um formigueiro nos pés ao descolar e comi tudo o que vinha no tabuleiro da refeição. As mãos que faziam mover a engrenagem que me mantinha viva, alimentada e confortável ficavam para trás e estariam sempre a 1000 quilómetros de distância, com o mar pelo meio, onde só voltaria nas férias. Foi preciso coragem, uma dose de inconsciência e a necessidade fez o resto, mas não me arrependo, crescer custa sempre.