Pode uma pessoa andar de biquíni num espaço público em Portugal?
‘Turista a passear de biquíni capta atenções no Funchal’. Este foi o título da notícia que, ontem, ‘incendiou’ as redes sociais do DIÁRIO, em particular, o Facebook. Até ao início da tarde de hoje, o texto já havia suscitado mais de 450 comentários e quase seis centenas de reacções.
Nessa multiplicidade de comentários houve manifestações de indignação, pelo que consideram falta de respeito, acusações de tratamento discriminatório entre turistas e habitantes da Madeira, defesa da liberdade individual, em especial em dias de calor, acusações de hipocrisia e de mentalidades não correspondentes aos tempos actuais ou quem se manifestasse preocupado com a imagem turística e defendesse a necessidade de serem estabelecidas regras de indumentária.
Entre os muitos comentários, um disse que o comportamento como o da turista em causa é legal em Portugal, apesar de não o ser em alguns países. Será mesmo assim?
O esclarecimento à dúvida não é linear e é certo que qualquer que seja a conclusão será sempre hipoteticamente alvo de contra-argumentos.
Nesta avaliação, socorremo-nos da ajuda de alguns trabalhos já publicados na imprensa nacional, ainda que não especificamente sobre andar ou não de biquíni na rua.
Em Portugal, não existe legislação específica, que proíba andar de biquíni na rua. Ainda assim, é necessário considerar o contexto e algumas normas que se aplicam à conduta em público.
A questão dos diferentes contextos é fácil de elucidar. Por exemplo, não é a mesma coisa andar de biquíni na Rua Dr. Fernão Ornelas num normal domingo à tarde ou andar de biquíni na Rua Dr. Fernão Ornelas durante a passagem de uma procissão religiosa.
Não há legislação sobre vestuário em Portugal, mas o Código Penal Português inclui o crime de ‘importunação sexual’ no Artigo 170.º, que pode ser invocado se uma pessoa se sentir ofendida ou assediada pelo comportamento de outra. Este artigo pode, em certos casos, ser interpretado de forma a incluir vestuário considerado indecente em locais onde se espera um certo nível de decoro, mas esta é uma acepção muito difícil de levar a uma condenação num caso como o da notícia em causa.
Um acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães (1700/17.1IPBBRG.G1) exactamente sobre o crime de ‘importunação sexual’, sintetiza: “I) O crime de ‘importunação sexual’ previsto no art. 170º do Código Penal visa proteger a liberdade sexual de outra pessoa, numa dupla dimensão: negativa, significando genericamente a liberdade de não suportar condutas que agridam ou constranjam a esfera sexual da pessoa, e positiva, como liberdade de interagir sexualmente sem restrições.
II) A ‘importunação sexual’ pode ter lugar através de três condutas típicas distintas: a prática de actos de caráter exibicionista, a formulação de propostas de teor sexual ou o constrangimento a contacto de natureza sexual.
III) Considera-se acto exibicionista toda a acção com significado ou conotação sexual de exposição dos órgãos genitais imposta a outrem, por ser contra a sua vontade, de modo a perturbar a sua liberdade sexual.
IV) Assim, integra o tipo legal de crime a conduta de exibição dos órgãos genitais pelo arguido, como o intuito sexual de constranger, chocar, vexar ou perturbar a vítima, forçando-a a um contacto com um comportamento de natureza sexual, sem necessidade de demonstrar que o acto exibicionista suscitou fundado receio da prática subsequente de um acto sexual com a vítima.”
Pelo que nos foi relatado na imprensa, não foi este o caso de domingo na Rua Dr. Fernão Ornelas. É, de resto, relevante a questão da exposição dos genitais. Por exemplo, as mulheres podem fazer top-less (expor a mamas) em qualquer praia, mas o nudismo só pode ser praticado em espaços públicos ou privados autorizados para tal.
Há, no entanto, uma linha ténue para a exposição de parte do corpo. Não pode ser exibicionismo sob pena de o sendo, entrar na questão da importunação sexual.
Não havendo lei que proíba andar-se na rua de biquíni, poderia haver algum regulamento Municipal, que definisse regras sobre indumentária em determinados espaços públicos, que não é o caso do Município do Funchal.
Ainda assim, a polícia pode sempre actuar em casos em que o comportamento de uma pessoa, no caso por andar com pouca roupa, cause desconforto significativo entre o público ou se esse comportamento for interpretado como sendo provocatório. Mas a actuação será sempre limitada.
A nível europeu o portal themayor.eu revela haver seis cidades/locais onde é proibido andar de biquíni/fato de banho. Um deles é Barcelona, desde 2011. Palma de Maiorca fez o mesmo em 2014. Superlotada, a ‘Pérola do Adriático, Dubrovnik, no Sul da Croácia, tomou idêntica medida. Depois foi Split, também na Croácia. As outras duas cidades são em Itália: Sorrento e Veneza.
Em Portugal, em 2023, identificámos dois casos com alguma semelhança ao que aconteceu no domingo, na Rua Fernão Ornelas, mas com figuras nacionais.
Em Abril Isabela Cardinali, ex-concorrente do programa ‘Casa dos Segredo’, andou de patins em biquíni. Partilhou as fotografias nas redes sociais e foi alvo de inúmeras críticas a que respondeu: “É um vídeo completamente normal, de uma miúda de 24 anos a divertir-se numa zona própria e adequada para andar de bicicleta/patins. Nunca pensei que fosse gerar todo este movimento completamente inadequado, antiquado e ofensivo”.
A actriz Inês Aires Pereira tem publicado várias imagens em biquíni e em top-less em espaços públicos, incluindo no centro de Lisboa.
Nesta abordagem deixámos de fora as apreciações de carácter moral, ético, religioso ou até sociológico, somente ligeiramente abordados na contextualização dos comentários suscitados pela turista, domingo, no Funchal.
Com base no acima exposto, pela avaliação que fazemos, de carácter formal, a frase da leitora, que afirma ser legal andar em biquíni nas ruas do País, é verdadeira.