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Fact Check Madeira

Será que nunca houve pessoas perseguidas e obrigadas a fugir da Madeira?

Foto Shutterstock
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Num fórum de discussão em língua inglesa na rede social X (antigo Twitter), um dos membros desafiou os outros membros a indicar “qual a maior cidade do mundo (população actual) onde não há nenhum registo de que a mesma tenha sido conquistada ou de que algum grupo de pessoas que morava lá tenha sido deslocado à força”. Num comentário de resposta, explica-se só não houve populações expulsas em territórios insulares que eram inabitados, até à chegada das actuais populações e aponta-se como exemplos Islândia, Canárias, Reunião, Cabo Verde e Madeira. Será que no nosso arquipélago nunca houve grupos sociais que foram perseguidos e obrigados a fugir?

Para podermos responder a esta questão é necessário recuarmos dois séculos, mais concretamente a 11 de Outubro de 1838. Foi nessa data que chegou à nossa ilha o médico escocês Robert Kalley, que era também pastor da igreja protestante. De acordo com o livro ‘Robert Reid Kalley: apóstolo em três continentes’, da autoria de M. Porto Filho, a mudança deveu-se ao clima ameno da Madeira, mais favorável à saúde frágil da sua mulher, Margareth C. Kalley. A família instalou-se numa casa no Vale Formoso. Sensibilizado pela extrema pobreza e o analfabetismo da população madeirense, o pastor protestante sentiu necessidade de intervir no plano social. Começou a fazer reuniões para a leitura bíblica e promoveu lições de Português. Na altura havia apenas dois médicos na ilha, pelo que Kalley passou a atender os doentes locais, sobretudo das classes mais desfavorecidas.

Deste modo, cresceu o número de pessoas que procuravam a casa da família escocesa, não só para curar as suas doenças como também para escutar os ensinamentos da Bíblia. Atendia centenas de pessoas e nessa altura foi construído o primeiro hospital com alojamento. Também participou na abertura de escolas noutros pontos da ilha. “O movimento educacional promovido pelo Doutor foi de tal ordem e com tão ampla repercussão favorável entre a população que a Câmara Municipal do Funchal” lhe atribuiu um louvor, segundo refere a citada obra.

Aumentava igualmente o número de seguidores da fé protestante, por influência de Kalley. Numa reunião realizada em São Jorge terão participado quase 1.500 pessoas. Mas a fama crescente do cidadão escocês terá suscitado a desconfiança e inveja junto de diversos sectores da sociedade madeirense, culminando na sua perseguição e dos seus seguidores. As primeiras dificuldades surgiram no final do ano 1841, por parte dos empregadores dos humildes camponeses, que “perceberam que, tornando-se mais instruídos, eles poderiam desejar uma vida menos árdua, pelo que iniciaram uma série de exigências para dificultar-Ihes a assistência as aulas”. Paralelamente, os médicos, que estavam a perder clientela, parecem também ter movido uma campanha de descredibilização contra o colega escocês, “afirmando que utilizava os seus trabalhos médicos e a sua propalada filantropia para introduzir heresias condenadas pela Igreja Católica”. Todas estas pressões fizeram com que o bispo D. Ianuário recebesse em Lisboa recomendaõees das autoridades metropolitanas para conseguir das autoridades civis da ilha a proibição dos trabalhos, quer evangelísticos, quer educacionais.

Assim foram crescendo os movimentos na área religiosa e civil contra Kalley, que se acentuaram com a chegada de um novo governador a ilha, Domingos Olavo Correia de Azevedo, que trazia ordens expressas para acabar com a obra do médico. Este foi, inclusive, aconselhado por amigos, alguns deles do clero, a abandonar a ilha, uma vez que se previa que o clima endurecesse à sua volta. Este cenário veio, de facto, a confirmar-se, pois, para além dos avisos para parar com as reuniões bíblicas, começaram a surgir, colados na parede de sua casa, alguns cartazes bastante duros, onde se podiam ler afirmações como “cachorro inglês, malvado! Se continuares a pregar contra a Igreja Católica, tu e teu amigo mariola, ficarás sem a vida e ele pior”.

A perseguição prossegue, sendo atiradas pedras à residência e realizadas algumas manifestações populares. A casa viria a ser incendiada a 9 de Agosto de 1846. Muitos dos seguidores do médico escocês foram presos, entre eles uma mulher com sete filhos. Muitas escolas foram fechadas e foi desenvolvida uma campanha para apreensão das bíblias distribuídas pelo Dr. Kalley. Ao mesmo tempo, eram lavradas as primeiras cartas de excomunhão.

Entretanto, o médico foi preso na cadeia do Funchal no dia 26 de Julho de 1843, onde permaneceu durante cinco meses e cinco dias. Durante esse período prosseguem as perseguições e alguns espancamentos na via pública. Todos os seguidores do Dr. Kalley passaram a ser chamados de calvinistas. Muitas famílias refugiaram-se nas montanhas, enquanto as suas casas eram arrombadas e saqueadas. Nem mesmo a casa de Kalley escapou. Nesse ataque uma criança de 12 anos ficou gravemente ferida.

Dada a gravidade dos acontecimentos, Robert Kalley acabaria por fugir da ilha, disfarçado de mulher, tendo embarcado, juntamente com a sua família, num navio inglês rumo aos EUA. Muitos dos seus seguidores acabariam por seguir o mesmo destino. Muitos foram para Trindade e Tobago, outros para o Brasil e Estados Unidos da América. Numa primeira vaga fugiram 1.200 pessoas e numa segunda fase mais 900.

Ao longo da história terão havido outros episódios de intolerância na Madeira. Foi o que aconteceu a algumas pessoas no período de convulsão política que se seguiu ao 25 de Abril de 1974. No entanto, os acontecimentos que envolveram a comunidade influenciada por Robert Kalley no século XIX constituem o episódio mais grave de perseguição e intolerância da História da Madeira.

A Madeira, tal como outros territórios insulares, onde as comunidades são constituídas essencialmente pelos primeiros povos colonizadores, são os únicos locais do mundo onde nunca se verificaram perseguições e expulsões de grupos de pessoas - sentido de um comentário publicado ontem na rede social 'X'.