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Crónicas

Como um dia ensolarado

A minha mãe era uma senhora morena de cabelo preto e essa é a memória mais antiga que guardo. Há até uma fotografia a cores desse tempo, tirada num dia ensolarado e em casa da minha tia Alice, onde estamos juntas e felizes, a minha mãe de sorriso aberto comigo em cima de um pilar. Foi uma relação complexa a nossa e teve tanto de amor incondicional como de amuos e choros, mas o mais estranho foi crescer com uma mulher incapaz de mentir.

O que dito assim parece bom. O que pode ser melhor para nos preparar para o futuro do que a honestidade, as palavras certas na hora certa ditas por uma mãe a uma filha? A filha que eu fui muitas vezes desejou ter uma mãe menos comprometida com a verdade e por várias razões. A que me doeu mais foi talvez o olhar derrotado quando me ouviu cantar a pleno pulmões “uma gaivota voava, voava” num tom tão desafinado que a fez exclamar um “ai esta pequena tira o som da música!”.

E chegou adentro e ao fundo das ambições da miúda que brincava aos concertos e usava o cabo da vassoura para cantar fora de tom em cima do terraço e no meio da fazenda, enquanto ela arrumava a casa e nem precisava da telefonia para encher cada quarto com o ritmo das canções que sabia de cor. A playlist tinha fados, Amália e Tony de Matos, Francisco José e os “Olhos Castanhos” e a ternura dos 40 do Paco Bandeira, mais a Nini do Paulo Carvalho.

A minha mãe tinha muitos talentos: sabia cantar, bordar, coser à máquina e fazia contas sem precisar de papel ou de lápis. O que era extraordinário e a tornava mais implacável do que o professor Baltasar. Ao mínimo sinal de fraqueza nas contas de dividir e vinha o comentário sobre a velocidade da minha compreensão, se estava a ficar lenta e eu sabia o que significava ficar lento. O professor tinha dividido a sala em três filas: os rápidos, os assim-assim e os lentos. Eu estava na fila dos rápidos.

Aquele compromisso com a verdade impedia-a de condescender e não nos ia mentir por sermos filhos. A vida era o que era. O meu irmão era ágil como gato e ela orgulhava-se disso, revia-se naquele rapazinho inquieto e preocupado, mas não lhe mentia sobre o desempenho na escola. Eu era gorducha, custava-me subir muros e árvores, não sabia cantar, nem bordar. O meu talento, e a minha mãe repetiu-me isso muitas vezes durante a infância e quando atravessei a adolescência, estava na minha cabeça, no que conseguia fazer com o gosto de aprender.

E ela, como todas as mães, acabou por se rever também em mim, na filha que lhe calhou e da qual nunca desistiu. Não fizemos um caminho fácil. Na casa do Laranjal ainda há uma porta que não fecha muito bem pelas vezes que bati com força, antes de me debruçar em cima da cama a chorar por não ter ido ao cinema, à praia ou ao café ou por outro desentendimento qualquer. Houve discussões, palavras duras, mas, no fim, nunca deixei de ter os braços que me acolheram, aquele amor incondicional onde couberam sempre todas as diferenças.

De uma certa maneira, nos 24 anos que partilhamos a vida, voltamos sempre àquele dia ensolarado no quintal da minha Alice como na fotografia em que estamos juntas, felizes, a minha mãe de sorriso largo e eu em cima do pilar onde ela me colocou.