Será que as conclusões das comissões de inquérito no parlamento regional nunca beliscaram o Governo?
Anteontem uma comissão especializada do parlamento regional aprovou um requerimento do JPP para a audição, com carácter de urgência, do presidente do Governo Regional, Miguel Albuquerque, e do secretário regional de Saúde e Protecção Civil, Pedro Ramos, para apurar responsabilidades políticas na gestão dos incêndios que recentemente assolaram a Madeira. Com o mesmo objectivo, o PS propõe a constituição de uma comissão de inquérito parlamentar e o CDS prepara uma proposta para criar uma comissão independente.
Numa reacção no Facebook, o ex-deputado Roberto Almada (BE) assumiu o seu cepticismo em relação ao resultado destas diligências: “Em quarenta e tal anos de actividade da nossa Assembleia, não houve uma única comissão de inquérito parlamentar que apresentasse conclusões contrárias à vontade da maioria que nos governa. A oposição representada no Parlamento acha mesmo que chamar Albuquerque e Pedro Ramos a uma comissão dessas, para que se apurem eventuais responsabilidades políticas decorrentes dos incêndios das últimas semanas, dará algum resultado?!”. Será que é mesmo assim?
Ao longo do período autonómico, registou-se uma evolução e reforço dos mecanismos à disposição dos deputados da Assembleia Legislativa da Madeira para a fiscalização da actividade política, mas a crítica dos representantes da oposição à forma como funcionam esses meios no apuramento de responsabilidades tem sido elemento comum durante todos estes anos, sobretudo por prevalecer a vontade da maioria parlamentar PSD.
Até à primeira revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, ocorrida em 1999, a tradição era chumbar todas as comissões de inquérito propostas pela oposição. Por exemplo, em Janeiro de 1992, o CDS propôs a constituição de uma comissão de inquérito sobre o “atentado ao ambiente” no funcionamento da Estação de Tratamento de Lixo da Meia Serra. Os outros partidos da oposição (PS e UDP) apoiaram a ideia, mas a iniciativa acabaria por ser rejeitada pelo PSD. Gil França (PS) lamentou o facto de todos os pedidos de comissões de inquérito serem ‘chumbados’ pela maioria laranja: “Não percebo porquê! Quem não deve, não teme”. Sérgio Marques (PSD) explicou que a posição do seu partido não era “uma questão de medo”. “Simplesmente consideramos que não existem razões para o inquérito e, depois, pensamos que as posições já ficaram aqui bem expressas”, justificou.
O Estatuto Político-Administrativo foi revisto em 1999 e a sua nova redacção veio facilitar a constituição de comissões de inquérito por vontade dos grupos parlamentares da oposição, pois bastava ter um quinto dos deputados em efectividade de funções para a sua viabilização. Assim, passou a haver comissões de inquérito, mas a vontade da maioria social-democrata continuou a prevalecer, seja recusando a auscultação das entidades propostas pelos deputados da oposição, seja com um relatório de conclusões favorável às posições de quem está no poder executivo.
O primeiro teste a este processo de fiscalização política foi a comissão de inquérito requerida pelo PS a um acidente com o desabamento de uma muralha na Estação da Meia Serra. O respectivo relatório, aprovado pelo PSD no início do ano 2000, concluiu que do acidente não resultou “qualquer indício ou evidência de efeitos nefastos, quer na própria zona da Estação., quer a jusante da mesma, até ao mar”. Já “relativamente às responsabilidades políticas do Governo Regional, as respostas e os esclarecimentos prestados pelo secretário regional (Jorge Jardim Fernandes) foram tão concretas e explícitas que se provou não existirem” culpas dos governantes.
Igualmente ilibatórios de responsabilidades do executivo madeirense foram os relatórios das comissões de inquérito sobre o monopólio no Porto do Funchal, a Universidade da Madeira e as sociedades de desenvolvimento da Madeira.
Apesar das alterações verificadas em 1999, as comissões continuaram a decorrer à porta fechada, quando nessa altura já eram à porta aberta na Assembleia da República. Esse modo de funcionamento persistiu até à transição nas lideranças do PSD e no Governo Regional, ocorridas em 2015. Com a chegada de Miguel Albuquerque à cúpula do poder executivo, não só os membros do Governo passaram a estar mais disponíveis para prestar explicações ao parlamento, como também as comissões de inquérito passaram a ser abertas à comunicação social.
Assim aconteceu em Março de 2019, com a comissão parlamentar de inquérito ao serviço de Medicina Nuclear do Hospital Dr. Nélio Mendonça, na sequência das denúncias de Rafael Macedo. Após a audição de duas dezenas de entidades e pessoas, o parlamento concluiu, com os votos da maioria PSD, que todas as acusações do médico resultaram "não provadas".
Mas a comissão mais mediática, que foi transmitida em directo pela RTP e pelo canal do parlamento na Internet, visou apurar as denúncias do ex-secretário regional Sérgio Marques relativas a “obras inventadas” e cedências feitas pelo Governo aos grupos empresariais. No respectivo relatório, redigido pela deputada Clara Tiago (PSD), lê-se que “a Comissão não apurou quaisquer relações existentes entre empresas e o Governo Regional que possam configurar situações de irregularidade, ilegalidade ou de conflitos de interesses”. Este documento veio a ser aprovado a 9 de Maio de 2023 apenas pelo PSD e pelo CDS, e com votos contra do PS e PCP.
As conclusões não agradaram ao PS, que apresentou uma declaração de voto com 100 páginas, que foi enviada ao Ministério Público, uma vez que os socialistas entendiam que as declarações de Sérgio Marques à comissão continham “factos” susceptíveis de levar a investigação por crimes graves.
Conclui-se, pois, ser verdade que até agora as comissões de inquérito na Assembleia da Madeira nunca imputaram responsabilidades políticas por situações graves aos governantes regionais, isto porque na actividade parlamentar vigora a lei da maioria. No entanto, há que realçar que a actual composição do parlamento, com uma maioria mais exígua e precária do PSD, proporciona pela primeira vez a constituição de comissões de inquérito em que a maioria dos seus nove elementos são da oposição. Ou seja, uma eventual comissão de inquérito sobre os incêndios pode representar conclusões incómodas para o Governo Regional.