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Crónicas

O fogo, ainda o fogo

As pessoas não querem deixar a casa - velha ou nova, grande ou pequena - só pelo valor, mas por todas as memórias

O pior incêndio é o que arde agora e no momento em que escrevo esta crónica, sentada debaixo de um alpendre na Lombada há um fogo lá em baixo, que avança devagar, mas longe dos bombeiros. Antes, de tarde, o povo das últimas casas ficou à varanda a ver se chegava, se era coisa para tirar as garrafas de gás e estender a mangueira.

Já vi esta história várias vezes nos dias que duram estes fogos. A mesma resistência, a mesma teimosia, a ideia de morrer no sítio, no posto, no lugar que é o único que é seu. Acho que é dignidade, a nossa, madeirense. E um madeirense define-se pela casa, pelos terrenos que herdou. Ou se calhar é de um certo tipo de madeirense para quem desfazer-se dessas heranças é trair o pai, o avô e todos os antepassados.

A eles, esses tais, custou muito tudo. Andar noite dentro, pela levada, para garantir água para regar, carregar uvas e canas e ficar ali, no engenho, à espera do pagamento decidido pelo dono. O meu avô foi um desses homens, agricultor, daqueles que acordavam cedo para ir tirar leite às vacas e andava pela fazenda com molhos de erva às costas. Lembro-me dele, das mãos de trabalho, já velho e não seria capaz de me desfazer do que deixou à minha mãe, às minhas tias e agora é nosso.

Somos três, no fim da nossa história de família. As nossas heranças são mais do que coisas, prédios e burocracias. É o que nos une agora que já não temos pais e a tia que nos resta perdeu a noção de quase tudo. A casa da minha tia foi o lugar onde eu caí e o meu primo Vítor me foi buscar e foi onde fizemos todos os natais até se mudar de vez para São Vicente. Foi naquele terraço que o meu irmão e eu contamos estrelas com a ilusão de que era possível contar todas.

As pessoas não querem deixar a casa - velha ou nova, grande ou pequena - só pelo valor, mas por todas as memórias. Lembro-me de encontrar pessoas a fugir de casa em 2016, nos incêndios do Funchal, com sacos cheios de fotografias, de quadros, de objectos que só tinham importância sentimental. Acho que é isso que nos define, que nos faz pessoas, que nos faz madeirenses. Eu, pelo menos, continuo a ser sobretudo a neta de um agricultor.