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Análise

Há quem queira ver a Madeira a arder

Há uma perigosa lista de incendiários nesta ilha em que o fogo posto é frequente

Há quem queira ver a Madeira a arder. Quem? Muitos mais do que aqueles que eram expectáveis, até porque pirómanos sempre houve nesta terra de negacionismo institucionalizado, de miserabilismo impingido e de ódios absurdos.

A ordem é irrelevante, mas há diversas personalidades a envolver obrigatoriamente em tudo quanto for moções de censura, auditorias, comissões de inquéritos, petições, queixas e eleições, a denunciar sempre que for preciso e a merecer redobrada atenção mediática quando renascermos, uma vez mais, das cinzas. Isto porque os incêndios não fizeram vítimas directas, mas tiraram-nos o sono e a qualidade de vida; não consumiram casas habitadas, mas destruíram palheiros e armazéns; não deram cabo da Floresta Laurissilva, mas mutilaram a paisagem e provocaram danos severos no património natural da Região; não provocaram até agora demissões, o que não surpreende, mas chamuscaram políticos, sobretudo os que se deixaram queimar pela prepotência e arrogância, mas também os que por causa de cinco minutos de fama e futuros sufrágios, apressaram-se a aparecer, a inquirir e a julgar ainda com o lume activo.

A vida de muitos madeirenses mudou para sempre com estes fogos que deixam marcas, comprometem equilíbrios no ecossistema e afectam o Turismo. E que sobretudo puseram a nu mediocridades dispensáveis, incompetências diversas, contradições abundantes, derivas comunicacionais e um sem número de manobras atentatórias da superioridade propalada e da afectividade que importa ter para com a população angustiada e em perigo. Eis por isso a perigosa lista de incendiários, em contínua actualização nesta ilha em que o fogo posto é assustadoramente frequente:

. Os que têm costas largas e que, com farda ou não, julgam tudo poder fazer - desde lançar foguetes, fazer queimadas e patuscadas, agitar fachos e encenar fogachos - sempre que se cruzam os temíveis ‘três 30’ decorrentes da temperatura acima dos 30 graus, humidade abaixo dos 30% e ventos superiores a 30 nós.

. Os que não têm memória numa ilha que só foi habitada porque queimada, mas que carece de melhorar procedimentos e ordenamentos para que não se torne um inferno com frequência.

. Os que durante anos foram incapazes de olhar para a Madeira como parte integrante de Portugal uno e diverso, subtraindo-lhe meios e aspirações. “Se os madeirenses, bem como os açorianos, são portugueses de pleno direito, porque não podem contar, em complemento e articulação ao seu, com um sistema nacional, incluindo meios aéreos, sempre que necessário? E por que isso não pode depender só de uma avaliação técnica, sem susceptibilidades políticas?”, questiona no DN Valentina Marcelino.

. Os que tiraram férias quando mais eram necessários, não fosse a praia fugir, sabendo que o histórico de fogos em Agosto obriga a vigilância permanente, atenção redobrada e disponibilidade imediata.

. Os que continuam a insistir em contenciosos que não passam de desculpas e os que não aceitam um bom conselho técnico, nem sabem ouvir.

. Os que falharam redondamente na comunicação e os que tentaram tudo para aparecer nas notícias, sem noção das prioridades e da eficácia da intervenção encenada.

. Os que não se dignaram respeitar quem informa, inundando as redacções de comunicados fúteis e repetitivos, e tentando interferir de forma premeditada no trabalho jornalístico. Acusar de branqueamento quem tudo tem exposto com rigor e transparência, criticar quem com poucos meios num mês estival se desdobra em tarefas diversas e pôr em causa a autenticidade das notícias é execrável. Não precisamos de elogios, nem de gratidão. Apenas que ninguém atrapalhe quem está ao serviço da população.

. Os que comentam de forma preconceituosa e incoerente tudo o que é da Madeira, mas fingem não ver o que lhes rebenta na vizinhança.

Há quem queira ver a Madeira a arder. Mas essa cegueira não é passível de generalização. Honra seja feita aos nem sempre reconhecidos bombeiros que têm combatido o fogo no terreno até à exaustão e até onde foi possível ir; aos autarcas que com ou sem colete reflector tomam medidas, antecipam cenários e reconfortam as populações; aos políticos, apenas aos capazes de apresentar soluções concretas para problemas que derivam da tragédia deste Agosto e os que se arrastam há décadas; aos especialistas altruístas que partilharam ideias fundamentais para o nosso futuro colectivo; às forças de segurança que evitaram males maiores e o alarmismo; às vozes que não calaram a revolta também perante aqueles que em vez de perceberem o essencial espalharam combustível e incentivaram ao ódio; aos cidadãos activos que em diversas frentes cooperaram para o bem-estar das populações afectadas; e também aos jornalistas, tanto os fumados pela actualidade por vezes cruel, como os que não se deixaram queimar pela desinformação sem escrúpulos decretada por assessorias dispensáveis.

Quando o fogo for extinto importa começar de novo, com lucidez e estudo, com compromisso e determinação. Até porque o perigo continua à solta. A Madeira que alguns querem ver arder precisa de gente capaz de acabar com lógicas instituídas, tradições absurdas e práticas anacrónicas. Enquanto for socialmente aceitável que só uns têm que fazer e bem a sua parte e todos os outros acham que podem ser incendiários, estamos condenados a ser eternamente sobreviventes.