Três notas sobre o incêndio na Madeira

Quando, por volta das 19:00 de quarta-feira, na sua comunicação televisiva, o Presidente do Governo Regional referiu preocupação com a eventual descida do fogo pela encosta da Nogueira, pensei que iria, finalmente, referir-se ao risco que o incêndio encerra para a Laurissilva. Enganei-me. A preocupação limitava-se à segurança da central hidroelétrica da Fajã da Nogueira. Desde o primeiro dia de incêndio, o que mais me surpreendeu foi a ausência, no discurso dos responsáveis políticos e da administração pública, de quaisquer referências ao património natural. A primeira prioridade foi, naturalmente, salvar as vidas humanas. A segunda, e bem, foi preservar as habitações, que, para além de um bem essencial para cada um de nós, encerram as memórias de cada família. Mas as prioridades acabaram aí. Aparentemente, tudo o resto que o fogo ameaçava não teria qualquer valor: nem as áreas agrícolas, nem a floresta de produção, nem as áreas naturais, incluindo a Laurissilva.

Foi esse estado de espírito que levou a uma resposta inicial muito incipiente. Nas primeiras intervenções públicas dos responsáveis, quando o incêndio estava confinado ainda à Ribeira Brava, mas estava já em crescimento, o número divulgado de operacionais no terreno não chegava às duas dezenas. Havia uma notória despreocupação com o lavrar do incêndio, desde que este estivesse longe das zonas habitacionais. Foi este estado de coisas que permitiu que o incêndio subsista há já uma semana e tenha destruído uma percentagem significativa da vegetação natural da ilha. Estou bem ciente das dificuldades que a orografia da ilha encerra. Talvez não fosse possível atacar o incêndio sem reforço dos meios aéreos. Mas não pode deixar de nos chocar a despreocupação geral, de políticos e responsáveis. Não houve uma palavra de lamento sobre o património natural perdido.

Na Madeira existe conhecimento técnico e científico mais que suficiente para a compreensão da importância do património natural, quer para o equilíbrio biofísico da ilha, quer para a sua economia. Na Universidade da Madeira, o Professor Miguel Sequeira tem estudado exaustivamente a Laurissilva e contrariado a ideia de que apenas as manchas florestais húmidas devem merecer cuidados de conservação. Alertou para a potencial ameaça para a vegetação endémica que, mesmo sem atingir essas manchas, o presente incêndio pode encerrar. Também na Universidade da Madeira, o Professor Miguel Ângelo Carvalho tem pugnado por revitalizar a agricultura familiar madeirense, valorizando as variedades agrícolas locais. A revitalização e ordenamento agrícola são contributos importantes para a mitigação dos fogos rurais. Do mesmo modo, a sociedade civil madeirense possui conhecimentos científicos, competências técnicas e vontade cívica para conservar o património natural. Por exemplo, o trabalho de recuperação da Laurissilva efetuado pelo Doutor Raimundo Quintal, e pelas associações que dinamiza, recolheu amplo reconhecimento nacional. Este repositório de conhecimento científico e técnico que existe na Região não parece, porém, chegar aos responsáveis políticos, nem à alta administração pública de nomeação política. Aparentemente, estamos perante um problema clássico de transferência de conhecimento, que urge ultrapassar. A decisão política, na Madeira, tem de evoluir de um modelo baseado no palpite, na tradição e na gestão da imagem, para um modelo baseado em evidências científicas.

Jorge M.L. Marques da Silva