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Os agressores não têm poder

Mais do que utilizar a tragédia dos incêndios como arma de arremesso, tem de haver um compromisso

Assisti, há pouco tempo, à série “Lamento de Uma América em Ruínas”, na Netflix, baseada no livro homónimo escrito por James David Vance, mais conhecido por J.D. Vance.

Ao longo da série, e enquanto desfilavam as memórias sobre a sua infância e os problemas sociais e económicos da sua família, facilmente sentimos empatia pela história de superação de um homem pobre que subiu na vida a pulso, representando a sua própria versão do sonho americano.

Contudo, confesso que se desvaneceu em grande parte essa imagem positiva ao ler declarações suas, quer antigas quer agora já no papel de candidato a vice-presidente de Donald Trump nas eleições americanas marcadas para novembro próximo.

A sua história de vida fica manchada com declarações que parecem provar que é um “clone de Trump”, como afirmou Joe Biden ou uma “espécie de versão 2.0 de Trump”, como bem disse Dennis Redmont, antigo correspondente da Associated Press em Portugal. Esse seu pendor também controverso e polémico ficou patente quando descreveu os democratas como “um bando de solteironas sem filhos e amantes de gatos, que têm vidas amargas e tomaram decisões miseráveis, por isso querem que o resto do país também seja miserável”. Afirmou ainda que Kamala Harris era um dos exemplos de mulheres líderes sem filhos que deveriam ser excluídas de posições de poder.

Como se uma mulher, sem filhos, por opção ou não, fosse um ser inferior ou sem capacidade de liderança. Em pleno século XXI, haver quem pense desta forma é deveras preocupante, triste e revelador do muito que ainda há a fazer em prol da educação e da mudança de mentalidades retrógradas e machistas na América e um pouco por todo o mundo.

Face às críticas que rapidamente surgiram, com perda de terreno junto das mulheres, segmento-chave do eleitorado, Trump distanciou-se, afirmando que um vice-presidente, neste caso Vance, não é assim tão importante. Recupero aqui a frase de Donald Tusk, atual primeiro-ministro da Polónia, que, em 2018, quando desempenhava funções de Presidente do Conselho Europeu, disse, referindo-se a Donald Trump: “com amigos destes, quem precisa de inimigos?”.

Por outro lado, não deixa de ser oportuno relembrar quão estranho e paradoxal parece ser Vance como número 2 de Trump, a quem anteriormente apelidou de “Hitler da América”, tendo também referido que nunca seria apoiante de Trump, que este era um terrível candidato e que era idiota quem votasse nele.

Mudar de opinião é salutar se pelas razões certas do bem-estar e interesse coletivo, mas também sabemos que, em política, mais vezes do que seria aconselhável, muitos mudam de opinião somente por conveniência e em proveito próprio, prevalecendo o egoísmo e o interesse pessoal acima de tudo e de todos.

No atual panorama político norte-americano é muito importante, direi mesmo crucial, que a candidata do Partido Democrata à Presidência dos Estados Unidos da América (EUA), Kamala Harris, tudo faça para ganhar a Trump nas Presidenciais americanas dentro de 3 meses. Não por ser mulher, mas porque é preciso travar um homem imprevisível e lunático como Donald Trump na sua caminhada para ser novamente Presidente dos EUA. No entanto, não escondo que gostaria de ver finalmente uma mulher como Presidente dos Estados Unidos da América.

Neste pouco tempo que falta para as eleições, Kamala tem de provar toda a sua força e competência, pois o mundo ainda exige mais de uma mulher do que de um homem em quase todos os níveis, sejam familiares, profissionais ou políticos. Como disse Hillary Clinton: “Sei (…) como pode ser difícil para as mulheres fortes candidatas lutarem contra o sexismo e a duplicidade de critérios da política norte-americana”. Da política norte-americana e não só…

A competência não tem género, mas, infelizmente, as oportunidades ainda têm, não se verificando o necessário protagonismo feminino no meio político, pelo que a eleição de Kamala Harris, mulher, negra, num país com o poder e influência dos EUA seria (será!) um símbolo de uma nova era e um passo gigantesco para redinamizar o progresso no sentido de uma verdadeira e efetiva igualdade de género, funcionando como fator de motivação e esperança para todas as mulheres.

Uma das primeiras decisões de Kamala foi escolher o seu vice-presidente. A escolha recaiu sobre Tim Walz, governador do Estado de Minnesota. Antigo professor e apresentado como um político normal pode ser o contrapeso certo face aos esquisitos, termo com o qual se referiu aos candidatos republicanos. Como disse Walz durante uma reunião de campanha: “Não temos medo de tipos esquisitos. Acredite na minha experiência como professor, os agressores não têm poder”.

Se Trump for o vencedor da disputa eleitoral americana há sinais claros que tal possa comprometer o diálogo e a paz em termos internacionais e potenciar a rutura com diversas organizações, de que é exemplo a pressão sobre a NATO. Com decisões insensatas, atabalhoadas e precipitadas, com o não cumprimento de acordos, Trump poderá mesmo comprometer objetivos globais, nomeadamente ao nível climático, comercial ou nuclear.

A imprevisibilidade e inconstância de Trump podem igualmente ter um efeito perverso e exercer pressões acrescidas em países como Portugal, que precisa, em termos diplomáticos e geopolíticos, de ver salvaguardados, com estabilidade e segurança, os investimentos e ações no espaço Euro-Atlântico.

Num mundo interligado, com conexões profundas entre as ações das grandes potências e os seus efeitos no resto do mundo, facilmente se compreende que não nos pode ser indiferente quem será o vencedor ou vencedora da disputa eleitoral nos EUA.

Há 248 anos, o Presidente Thomas Jefferson, na assinatura da Declaração de Independência dos EUA, brindou com vinho Madeira. Que Kamala Harris possa também brindar em novembro com vinho Madeira, comemorando a sua eleição como primeira mulher Presidente dos Estados Unidos da América.

P.S.: Em primeiro lugar, quero manifestar a minha solidariedade às populações afetadas pelos incêndios.

E deixar também uma palavra de apreço e gratidão aos bombeiros e demais operacionais que têm sido, mais uma vez, incansáveis no combate aos fogos.

Independentemente da causa que tenha estado na origem dos incêndios (incúria, crime ou outras razões), ficou evidente que urge uma mudança no planeamento e ordenamento do nosso território.

Em termos políticos, mais do que utilizar a tragédia dos incêndios como arma de arremesso, tem de haver um compromisso claro, assumido por todas as forças políticas, no sentido de fomentar políticas mais eficazes de prevenção e controlo dos incêndios.

Quando há pessoas, animais e bens em perigo, e se assiste à destruição da nossa floresta, não pode haver atrasos ou vacilos nas decisões, e tem de existir a presença dos principais decisores no terreno, desde a primeira hora.

Não podemos assumir os incêndios como uma fatalidade crónica, temos é de perceber que é urgente uma mudança de paradigma, com uma maior e melhor consciência cívica e ambiental.