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Crónicas

Do Bores e dos incêndios

1. Somos constantemente bombardeados com a treta de que o Estado nos dá coisas. Que o governo seja promotor dessa parvoíce, é porque lhe dá jeito e lhe está na massa do sangue. Quando a ideia é plantada por outras vias que têm a obrigação de informar, é triste.

A ideia de que o Estado “dá” dinheiro aos contribuintes através do reembolso do IRS está errada. O que acontece é que o Estado está a devolver parte do dinheiro que já nos tirou ao longo do ano. Vamos dar a volta a isto com uns exemplos fáceis de entender.

Imaginem que o IRS é como um pote onde todos colocamos dinheiro ao longo do ano. Cada mês, quando recebemos o nosso salário, uma parte dele vai para este pote. Esse dinheiro é retirado dos nossos salários.

No final do ano, o Estado faz as contas para ver se nos tirou mais dinheiro do que devia. Se isso aconteceu, devolve-nos essa diferença. Isto é o reembolso do IRS.

Se forem a uma loja comprar qualquer coisa e pagaram com uma nota de 20 euros, e o produto custar apenas 15 euros, a loja dá 5 euros de troco. Este troco não é um presente, é apenas a devolução do nosso próprio dinheiro. O reembolso do IRS funciona da mesma forma: é o “troco” que o Estado nos devolve.

Durante o ano, o Estado usa o dinheiro que recolhe de todos para pagar serviços como saúde, educação, estradas e outras despesas públicas.

Quando recebemos o reembolso do IRS, não estamos a receber um presente do Estado. Estamos apenas a receber de volta o dinheiro que era nosso desde o início.

Até recebermos o reembolso, o Estado usa esse dinheiro para outras necessidades. Isto é como se alguém ficasse com o nosso troco por um tempo antes de nos devolver.

E é batalhar nisto até que todos percebam que não nos estão a dar nada, que devolver não é o mesmo que dar.

2. Gosto muito de animais, é um assunto que me preocupa, mas não alinho em animalismos demagógicos.

Este voto de pesar, proposto pelo PAN, pela morte do lince-do-deserto Bores, é absurdo e inútil, para não dizer que é um insulto à inteligência de qualquer pessoa com um mínimo de bom senso. Comecemos pelo básico: temos um partido político, que devia focar-se em questões verdadeiramente importantes, como, sei lá, assim na loucura, a economia, a saúde pública, ou quem sabe até a manutenção das estradas sem buracos, mas não, o PAN decide gastar o seu tempo e o da Assembleia, a propor um voto de pesar… por um lince. Se ainda fosse sobre o absurdo de toda a situação, ainda vá lá, mas não.

E não é qualquer lince, mas um que, por alguma razão tresloucada, alguém achou que seria uma boa ideia transformar num animal de estimação. Que foi vítima de tráfico de animais. Mas afinal quem não gostaria de ter um felino selvagem na sala, ao lado do sofá estraçalhado e dos restos da alcatifa?

E quando as coisas, inevitavelmente, correm mal, o que faz o PAN? Um espectáculo político: propor um voto de pesar por um animal que, francamente, nunca deveria ter saído do seu “habitat”.

Este antropomorfismo excessivo, esta desproporcionalidade, está falta de contexto político e mediático, onde o animal é tratado quase como um ser humano, atribuindo-lhe sentimentos e motivações humanas, é por demais absurdo. Embora seja importante reconhecer o sofrimento animal, tudo isto é um exagero e uma tentativa de manipulação, tentando suscitar uma resposta emocional desproporcional.

Além disso, a proposta de um voto de pesar oficial para um animal, no contexto legislativo, onde geralmente se reservam para falecimentos de figuras públicas ou eventos de grande impacto social, não tem pés nem cabeça, pois banalizar o voto, tornando-o desmerecedor.

O que temos aqui é um partido a achar que é o único que se importa, a culpar tudo e todos e, de alguma forma, a tentar passar uma mensagem moral sobre como deveríamos ser melhores. Isto não passa de mais uma peça de teatro político. De mau teatro, uma encenação barata, daquelas que se paga com meia dúzia de pataco para ver numa tenda remendada num parque.

Então o que se pretende com isto? Chorar a morte de um lince? Ou apenas marcar o tempo e fingir ser um partido sensível e consciente? Eu diria que este voto de pesar é tão útil quanto tentar ensinar uma vaca a dançar o tango: uma total e completa perda de tempo.

Se ainda fosse um voto de repúdio a todos aqueles que maltratam diariamente os seus animais de companhia, que os abandonam, que não os tratam com carinho e atenção? Mas não.

Coitado do Bores, nem depois do destratamento o deixam descansar em paz.

3. Ao fim de quatro dias suas excelências, o Sr. Presidente do Governo e o Sr. Secretário da tutela dignaram-se interromper as férias e dar um ar na condução, que lhes compete, da situação de catástrofe que lhes compete.

O incêndio que deflagrou na passada quarta-feira, dia 14 de agosto, revelou de forma clara e lamentável a incapacidade de resposta das autoridades competentes. É inacreditável que, numa situação de tamanha gravidade, se note uma total falta de coordenação e de preparação. Como é possível que, com três frentes de incêndio activas, se demore tanto a tomar decisões cruciais, como o reforço dos meios de combate? Esta inércia coloca vidas em risco e expôs a fragilidade do sistema de proteção civil.

A enorme falta de sentido de tudo. Depois de na 6.ª feira o Governo ter recusado ajuda do Governo Central, no sábado, por volta das 13.00h o Secretário Pedro Ramos diz que os meios que temos são suficientes. Às 15:00 devem ter-se esgotado todos e só aí se aceitou a disponibilização de homens e meios. Esta falta de perspectiva, de conseguir ver o que está debaixo do nariz é de bradar aos céus. Somos os maiores e não precisamos da ajuda de ninguém. O umbigo do mundo fica na Quinta Vigia.

Esta falta de visão e de capacidade para antecipar problemas é inaceitável. É acontece com quase tudo o que diz respeito à governação. Como é possível que, com um incêndio desta magnitude, as autoridades não tenham percebido desde o início que precisavam de mais apoio? Esta miopia governamental colocou em risco a segurança das populações e dos próprios operacionais que estão no terreno a arriscar as suas vidas.

Do alto da sua soberba, Presidente do Governo, numa trapalhada que não pode ser ignorada, veio dizer l que o vento com direcção norte não era preocupante. Momentos depois, Pedro Ramos vem contradizê-lo ao dizer que as próximas 48 horas seriam as mais críticas. Este tipo de contradição não só induz à confusão, como é perigoso. Revela uma descoordenação preocupante no seio do governo, onde decisões e avaliações são feitas sem a devida ponderação e sem considerar a realidade no terreno.

Aquilo a que assistimos nesta tragédia é a uma demonstração cabal de incompetência, descoordenação e falta de responsabilidade por parte das autoridades. É um momento triste para a Madeira, em que se torna evidente a necessidade de mudança e de uma liderança que esteja verdadeiramente preparada para enfrentar as adversidades.