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Crónicas

As visitas

A emigração levou-lhes pessoas, afectos, laços e as visitas lembravam isso mesmo, essa perda sem remédio

O Laranjal tinha mais gente do que a que estava à vista e, em todas as casas, faltava um tio, uma irmã ou vários irmãos, às vezes, o pai. As fotografias em cima da cómoda gritavam a ausência de todos os que, um dia, tinham feito as malas e embarcado para terras que ninguém sabia bem onde ficavam. A Venezuela, a África do Sul, o Brasil e a América não eram bem países, eram os lugares que haviam engolido de forma quase definitiva a minha tia Gabriela, o Emanuel do tio João do Pilar e a família inteira da senhora Celeste, a vizinha da frente.

As minhas tias e a minha mãe falavam da irmã e dos primos como se ainda andassem por ali e não esqueciam a infância, de como tinham brincado juntos nas oitavas do Natal ou as festas ao som de um gramofone emprestado, o mesmo que tocou tangos e paso doble no casamento da minha tia Alice. Quando eu nasci já não havia festas na sala da casa do meu avô e custava a acreditar que tivesse havido dança num quarto tão acanhado. As pessoas eram mais memória do que gente de carne e osso e tudo o que tinham feito antes de emigrar remetia para um tempo pré-histórico, com casas sem luz, sem água e sem telefone.

Todos os meses as cartas do Brasil alimentavam a saudade com fotografias dos meus primos em casamentos e em cerimónias de entrega de diplomas de curso; e de novas amizades como a comadre japonesa, uma vizinha de Barretos, a cidade onde a minha tia Gabriela viveu e morreu. Lembro-me desta comadre pelo espanto que foi a imagem das duas senhoras em frente a um Mercedes Benz dos anos 70, um carro grande e espaçoso. Só não era dourado como o dos venezuelanos que, por essa altura, mostravam o dinheiro e o sucesso com dentes de ouro e roupas extravagantes.

A minha tia Alice costumava dizer que a irmã tinha escolhido mal o lugar para emigrar, mas era da sorte e, por isso, a meio dos anos 80, tinham todas perdido a esperança de voltar a abraçar a tia do Brasil, aquela senhora de óculos e meia idade das fotografias. A família - quando somavam primos direitos e e em segundo grau - tinha mais gente emigrada e, volta e meia , aí a meio de Agosto, lá corriam a abrir a sala para receber um primo ou alguém de fora. A sala existia para as visitas e tinha graça ficar no sofá a ouvir conversas e a deitar a mão aos bocadinhos de bolo de mel e azeitonas.

Os licores, as garrafas de uísque e de outras bebidas finas só estavam dentro do armário para servir estes desconhecidos. O mesmo acontecia com os copos bonitos, as travessas e os pratinhos onde eram postos antes de ir à mesa. A não ser no Natal ou nos aniversários, a nossa dieta não incluía salgadinhos ou broas e havia pouca laranjada ou brisa maracujá. Eu estava a crescer, gostava de doces e bolos e ia solícita da cozinha com a bandeja, os copos a bater uns nos outros, a imitar os mesmos sorrisos da minha mãe e das minhas tias.

Até a minha tia Teresa perdia a timidez e tratava aqueles senhores e senhoras por tu, fazia mais perguntas do que era habitual. Por mais estranho que me parecesse, aquelas pessoas tinham sido crianças e adolescentes, tinham crescido juntos, corrido pela fazenda e estavam a fazer o que qualquer pessoa faz quando reencontra um amigo: a retomar uma conversa como se fosse ontem e não tivessem passado anos. Se havia alguém desconhecido era eu, a filha da Celina, a miúda onde tentavam sempre encontrar semelhanças e encontravam, quase sempre com todas as pessoas da família que fossem morenas e de cabelo preto.

Quando acabava, quando se levantavam os copos e lavava as bandejas, havia sempre aquele vazio e aquela nostalgia, uma sensação que ficava a pairar na sala e no olhar das minhas tias e da minha mãe. A emigração levou-lhes pessoas, afectos, laços e as visitas lembravam isso mesmo, essa perda sem remédio.