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Abertura dos Jogos Olímpicos: o obscurantismo

A cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos 2024 foi tudo menos consensual. As redes sociais foram invadidas por mil interpretações de várias cenas representadas ao longo das 4h deste espetáculo. É curioso como toda a polémica centra-se na “ofensa à religião católica”, e muitos/as até identificaram símbolos de “adoração ao diabo”. A ignorância e a intolerância, realmente, servem a alguns senhores, mais terráqueos do que divinos.

Há quem diga que o cavalo de aço com uma amazona, que “cavalgou” sobre o rio Sena, representava a Morte, um dos Cavaleiros do Apocalipse. A História diz-nos que esta imagem representava a deusa Sequana, uma divindade de cura adorada por uma tribo de origem celta, os sequanos, e adaptada em culto após a conquista romana da Gália (antiga França) no século I a.C. (antes de Cristo).

O maior escândalo diz respeito a uma suposta representação, feita por drags, do quadro de Leonardo Da Vinci “A Última Ceia”. Vários “homens importantes” vieram a público criticar esta representação, como Trump, e outros, como Edrogan, até querem falar com o Papa. No final de contas, os/as artistas estavam a representar “O Banquete dos Deuses”, de Jan van Bijlert, e “A Festa dos Deuses”, de Giovanni Bellini. Estes quadros, com uma iconografia semelhante ao de Da Vinci, retratam cenas no Olimpo – conjunto das divindades da mitologia grega, que moravam no Monte Olimpo, que se situa entre a Macedónia e a Tessália – e a chegada de Dionísio, o deus dos ciclos vitais, das festas, do vinho, do teatro e afins. Por sua vez, muitos deuses e semideuses do Olimpo eram gays e bissexuais (como Aquiles, Narciso, Apolo, Hermes, Pan, Dionísio, Heracles, Poseidon e Hermafrodita). Aliás, a homossexualidade e bissexualidade eram corriqueiras na sociedade da Grécia Antiga.

Nesta cerimónia também foram selecionadas homenageadas 10 mulheres feministas francesas, que lutaram pela igualdade de género, desde a idade média até à atualidade. Claro que os/as defensores/as da religião católica tinham que criticar o facto de Joana d’Arc não estar representada. Sim, uma mulher que se destacou, mas não como lutadora pela igualdade de género. Foi considerada uma heroína na Guerra dos Cem Anos por contribuir para a coroação de Carlos VII de França. No entanto, após o fracassado Cerco de Paris, Joana foi capturada, entregue aos ingleses e julgada pelo bispo Pierre Cauchon, acabando por morrer na fogueira, queimada viva, às mãos da Igreja Católica no século XV. Foi beatificada e canonizada no século XX… cinco séculos depois!

Existem e existiram outras religiões para além da Católica. Vale a pena estudar um pouco da História, para deixarmos de olhar apenas para o nosso umbigo e perceber que as civilizações passam por fases, transformações, avanços e recuos, e que no todo é que está a riqueza da Humanidade. Nisto, inclui-se várias religiões e crenças (e também, ausência delas), países, figuras, tradições e afins. A História é o que é, e olhar para o passado serve para aprendermos a construir um melhor presente.

Os Jogos Olímpicos tiveram início na Grécia Antiga entre os séculos VIII a.C. e V d.C. (depois de Cristo). Esta 33ª edição em Paris decidiu homenagear a História, destacando as palavras que fizeram a Revolução Francesa: Igualdade, Liberdade e Fraternidade. Talvez muitas pessoas não estivessem preparadas para tanta informação, talvez a França tivesse querido mostrar tudo. Mas julgo que o maior problema são os tempos confusos em que vivemos, onde o excesso de informação (muita dela, falsa, superficial e tendenciosa) conduz ao “movimento de rebanho”, em que é mais fácil seguir outras pessoas, ler apenas títulos de notícias e ir na maré do maldizer e da conspiração, com a ajuda dos algoritmos. Apenas porque “todo o mundo” faz igual. Temo que o obscurantismo esteja cada vez mais presente. Para evitá-lo, e uma nova Idade Média, é preciso sair um pouco das redes sociais, estudar e pesquisar, e tirar as suas próprias conclusões.