Será que os governantes madeirenses desvalorizam o problema dos “carros a mais”?
A notícia de mais uma manhã com tráfego automóvel intenso na via-rápida provocou diversos comentários na página do Facebook do DIÁRIO. O diagnóstico de uma leitora é que há “carros a mais nesta ilha”. “Infelizmente só os nossos governantes não vêem isso”, completou outra cidadã. “Isto ainda não começou a sério. Do jeito que as ‘rent-a-car’ estão, sempre cada vez mais carros e com as autoridades a assobiar para o lado, qualquer dia ninguém se consegue deslocar”, lamentou um leitor. Será que os cidadãos têm razões para crer que os decisores políticos desvalorizam a situação?
A consulta ao arquivo do DIÁRIO permite constatar que há mais de três décadas que o excesso de tráfego automóvel é tema de discussão na sociedade madeirense. A primeira vez que o Governo Regional abordou a questão foi em Fevereiro de 1990, quando o então secretário regional da Administração Pública, Bazenga Marques, convocou uma reunião com diversas entidades (CMF, PSP, ACIF, ASSICOM, Horários do Funchal, Antral e ANTRAM) para preparar uma acção conjunta para melhorar o trânsito no Funchal. Um mês depois, quando questionado sobre o crescente aumento de automóveis e as medidas a tomar nesse sentido, Bazenga Marques referiu que não era possível travar o aumento de carros no arquipélago, já que não se podia impedir a livre circulação de bens e pessoas entre a Região e o continente, até porque isso levaria ao envelhecimento da frota. Disse ainda que a construção de novas estradas iria permitir "descongestionar de forma significativa o trânsito", atenuando o problema do excesso de viaturas.
Na campanha eleitoral para as eleições autárquicas de Dezembro de 1993, o assunto voltou a estar na ordem do dia. É que uma das principais preocupações da candidatura do PS à Câmara do Funchal era o intenso tráfego de automóveis ligeiros de passageiros na capital. O cabeça-de-lista André Escórcio estava preocupado com o “caminho de ruptura” provocado pela entrada de mais 250 carros por mês no mercado regional. Propunha, nessa altura, uma política de incentivo à utilização dos transportes públicos e construção de parques de estacionamento na periferia da cidade, de modo a descongestionar o centro.
Esta posição suscitou a discussão do assunto, tendo o colunista do DIÁRIO Duarte Jardim, classificado como “ridículo” o propósito de reduzir ou proibir a entrada de automóveis na Região. “Não se pode justificar os problemas de trânsito da nossa Região com o excesso de veículos que existem em circulação, porque seria ridículo comparar a nossa taxa de motorização com as dos outros países da Comunidade Europeia”, escrevia esse colaborador.
Em Março de 1995, altura em que se estimava que circulassem 40 mil carros na Madeira, o DIÁRIO voltou a abordar a questão. No ano anterior tinham sido desembarcados 5.225 veículos ligeiros no porto do Funchal. Colocados em fila indiana, estes carros enchiam as ruas da Pontinha até ao Monte. Questionado se a Madeira não deveria ter um limite para a sistemática entrada de automóveis, o então director regional dos Transportes Terrestres, Cruz Neves, disse que tal hipótese não se justificaria. Também o então director regional de Estradas, Filipe Ferreira, desvalorizou o problema e garantiu que com a construção da Cota 40 e da via-rápida, que estariam concluídas em 1999, tudo estaria “em condições de libertar definitivamente a cidade” do Funchal do problema do trânsito.
Há carros a mais e o que há a fazer é minimizar os problemas, reduzindo o tráfego no Funchal. Estacionamentos para os moradores para não desertificar a cidade e parcómetros para que os lugares sirvam mais pessoas Miguel Albuquerque, presidente da CMF, em 15/07/1998
É verdade que há carros a mais, mas essas pessoas estão no pleníssimo direito de possuírem e utilizarem o seu carrito António Ribeiro Marques da Silva, professor e ex-deputado do PS, em artigo de opinião em 13/03/1996
Em Março do ano 2000, o engenheiro João Correia, que era chefe de Divisão de Remoção de Resíduos Sólidos Urbanos da CMF, em artigo de opinião, colocava o ‘dedo na ferida’: “Quase toda a gente afirma, em conversa de café, que o excesso de automóveis é já um problema ambiental de importante dimensão. Falta, agora, o reconhecimento das entidades competentes na matéria de que estamos perante um problema que necessita ser estudado e, após isso, ter a coragem de intervir no sistema com as medidas que salvaguardem a nossa saúde, o nosso ambiente e o nosso turismo”. Oito meses depois, João Correia foi chamado para o Governo Regional, tendo sido director regional do Saneamento Básico (2000-2008), do Ambiente (2007-2011) e do Ordenamento do Território e Ambiente (2011-2015).
Na campanha para as eleições autárquicas de 2001, a candidatura da CDU no concelho do Funchal voltou a abordar o problema dos “carros a mais”. Esta força defendia um reforço da rede de transportes públicos e a promoção de outros meios de transporte, nomeadamente a bicicleta.
A 18 de Novembro de 2008, no âmbito de uma reunião do projecto Civitas, o vice-presidente da CMF, Bruno Pereira, assumia que as medidas práticas adoptadas no terreno no município do Funchal para promover a utilização do transporte público como meio preferencial no acesso à cidade, mas não foram suficientes para mudar as mentalidades, já que o recurso ao automóvel ainda era significativo.
Depois da crise financeira de 2007/2008, abrandaram as críticas relacionadas com a intensidade do trânsito automóvel. Já durante a pandemia, com as fortes restrições de circulação, o problema deixou mesmo de existir. Mas com a retoma da actividade económica, nos anos de 2022 e 2023, as queixas dos madeirenses sobre este tema voltaram à ordem do dia, sobretudo devido ao aumento do tráfego nas horas de ponta na via-rápida e ao afluxo elevado de viaturas de aluguer nos pontos de maior interesse turístico, como o Pico do Areeiro, Rabaçal, Ponta de São Lourenço e centro do Funchal. A situação agravou-se no corrente ano. Para que se tenha uma ideia, se no início de 2023 havia 2.000/3.000 viaturas de rent-a-car registadas na Madeira, hoje serão à volta de 10 mil viaturas.
Apesar das queixas e lamentos de vários sectores da população, não se conhecem da parte do Governo Regional, ao longo das últimas décadas, medidas penalizadoras ou restritivas à entrada e circulação de automóveis no nosso arquipélago, nem mesmo declarações de intenção nesse sentido. A actual política do executivo segue as orientações vertidas no Plano de Acção para a Mobilidade Sustentável da Região Autónoma da Madeira (PAMUS) em vigor desde meados de 2019, que se limita a apontar estratégias e acções para promover o transporte colectivo, tanto para residentes como para turistas.
Podemos, pois, concluir que o Governo Regional reconhece que existe um problema com o número de veículos ligeiros em circulação no arquipélago. No entanto, tem adoptado medidas não penalizadoras deste tipo de transporte, esperando que as dificuldades se resolvam com a adesão voluntária dos cidadãos à alternativa dos transportes colectivos. Nesse sentido, podemos concluir que os governantes têm desvalorizado a questão e não a consideram um problema grave e urgente.