DNOTICIAS.PT
Crónicas

Da cidade para casa num carro de praça

A minha mãe tinha prometido que me matriculava numa escola da cidade, onde ia ter muitos professores, muitos livros e cadernos e um passe para andar nos horários da CASAL

O ano em que fiz a quarta classe foi decisivo na minha vida e por vários motivos, mas já lá vamos, a todas as coisas que se alteraram no dia em que acabei o ano com Bom a tudo e corri pelo caminho acima em direção a casa e a três meses de férias grandes. A minha mãe tinha prometido que me matriculava numa escola da cidade, onde ia ter muitos professores, muitos livros e cadernos e um passe para andar nos horários da CASAL, os velhos autocarros brancos e azuis que, nesse tempo, ligavam o Laranjal ao centro, ao lugar onde havia lojas, consultórios médicos, casas de fotografias e farmácias.

Com o meu irmão tinha sido assim e não havia uma razão para ser diferente comigo não fosse estarmos em 1981 e haver quem defendesse uma educação adequada às meninas. As meninas - e eu era uma - deviam ficar pelo mínimo para poupar dinheiro à família e preparar o futuro onde daria mais jeito um curso de corte e costura. Os pais não as queriam à solta e longe da vista, a andar abaixo e acima no horário, onde podiam falar com rapazes na escola ou na paragem. E para tirar o diploma do 2.º do ciclo havia a telescola.

Eu tinha ouvido tudo isto nas conversas das mulheres dos bordados, quando se demoravam mais e ficavam a falar nos degraus da entrada, das visitas que apareciam e se espantavam com os planos da minha mãe. “E o seu marido vai deixar?” Foi quando descobri que os maridos e os pais se intrometiam em assuntos estranhos como o comprimento dos cabelos das filhas, a cor das roupas e se opunham aos estudos. O meu pai cantava o fado do empossado às sextas-feiras, quando chegava a casa tocado pelo vinho seco, mas não perdia tempo com o meu cabelo ou com a roupa e nada o deixava mais feliz do que as minhas notas da escola.

O vinho seco também o fazia falar do futuro com as lágrimas nos olhos, desse dia em que seria um homem realizado e feliz: quando nos visse com a capa preta de finalistas do liceu. A minha mãe não faltava às promessas e o meu pai era capaz de me defender de tudo, mas eu tinha 10 anos, estávamos em 1981 e a vida era muito diferente. E se faltasse o dinheiro? Os meus pais falavam sempre de dinheiro, do que era preciso e da ginástica que tinham de fazer para trocar o colchão de lã por um de molas, que os deixasse dormir melhor.

E foi no dia em que os meus pais compraram o colchão de molas que tive a certeza que ia estudar numa escola da cidade. Nessa manhã andei de loja em loja de móveis, ouvi a minha mãe regatear os preços e vi o meu pai tirar as notas para pagar um colchão e uns candeeiros novos, mais uns lençóis, loiça e panos de cozinha. No fim, levaram-me a uma relojoaria na Rua da Conceição para comprar um relógio de pulso. A minha mãe disse-me que era importante para saber as horas do autocarro e das aulas e que podia escolher um que gostasse. Lembro-me que escolhi um dourado, com um mostrador quadrado e muito à moda, que me fez sentir grande e feliz.

Quando nos arrumámos na parte da frente do carro de praça - com as compras na carroçaria - já só tinha olhos para o lindo relógio no meu braço e para tudo o que prometia. Daí uns meses eu seria parte daquela multidão de adolescentes que enchia as salas de aulas e os autocarros, que aprendia inglês e tinha aulas de desenho e requisitava livros na biblioteca e, nos intervalos, comia bolos e gelados. Os meus pais nunca pagariam quase cinco contos por um relógio se não fosse com esse propósito, de me ajudar na vida nova que me esperava nesse Outubro.