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Crónicas

Eles andam aí

Primeiro seduz, a seguir corrói lentamente, depois destrói. No final, sorri para o rasto de destruição que causou, sem qualquer empatia, com a frieza glaciar que lhe é característica, sai de cena em busca da próxima vítima

Observo, cada vez mais, com curiosidade, que pessoas, aparentemente educadas, pessoas que conseguem inspirar e tornar-se vastamente admiradas por outras, que se notabilizam nalguma área específica, podem, também, ser muito competentes em revelar muitos comportamentos perversos, inadequados, disfuncionais e perigosos. Por serem pessoas que de alguma forma se destacam das demais, algumas, por exemplo, através do recurso às redes sociais e à proliferação do marketing digital, quando estes comportamentos ficam a descoberto, a “bomba rebenta”.

Falo de abuso – de todas as formas de abuso – e dos abusadores, que são, na grande maioria, por natureza, narcisistas. Têm uma elevada autoconfiança e estima por si mesmos e pelas suas faculdades, e consideram-se a si próprios num tal grau de superioridade (muitas vezes, para quem vê, disfarçado de humildade) que os leva a verem-se como intocáveis e obviamente inquestionáveis, façam aquilo que fizerem. Muitos deles têm fama de ‘santidade’ em vida.

Nos últimos anos tenho assistido a casos concretos, de abuso, que têm aguçado a minha vontade de investigar este tema. Além disso, com duas filhas e um enteado, dois adolescente e outra quase pré adolescente, quero mesmo estar muito atenta a este fenómeno, que parece crescente. E como escuto, em contexto de reportagem, em contexto de amizades e noutros, inúmeras queixas acerca de abuso e sobretudo, tantas dúvidas sobre se alguém está ou não, a ser vítima de abuso, reuni sete pontos descritos pela neuropsicologia como presentes, nas atitudes dos abusadores.

1 - Cuidadosos na aproximação, procurando demonstrar qualidades elevadas, tanto humanas, quanto competências técnicas que convençam facilmente quem com eles convive, até porque acreditam haver uma razão especial que os torna diferentes de outras pessoas e que merecem tratamento diferenciado.

2 - Utilizam a sedução, numa espécie de operação de charme quase permanente, com recurso a validação, elogios, presentes, convites e tudo o que for necessário para que o outro acredite pertencer ao seu círculo de amizade e/ ou confiança. Isto acontece também, porque têm uma necessidade excessiva de atenção o que os pode conduzir a terem atitudes e a tomar decisões com o objetivo único de receberem algum reconhecimento em troca.

3 - Promessas. É uma extensão da atitude anterior. Recorrendo ao seu reforço com promessas concretas, ou algum género de recompensa futura. É comum acenarem às vítimas com recompensas de estatuto, ascensão social, poder, dinheiro, salvação. Até porque, a preocupação com o sucesso, conduta exemplar, dinheiro, status, amigos influentes, admiração, roupas caras e carros luxuosos é permanente.

4 - Percorridos os três primeiros passos, os abusadores conquistam um domínio controlador e como são astutos sedutores, fazem parecer que todos os seus comportamentos são justificáveis. Isso “dá-lhes” carta verde para continuarem a avançar e aprofundarem a intrusão e as suas exigências, sem aceitarem qualquer crítica às suas condutas, nem mesmo as mais construtivas.

5 - O poder é mantido através da manipulação e controlo, cada vez mais agressivos e com recurso à mentira. Difamar quem não conseguem manipular ou a quem já não se permite ser manipulado é certo, num abusador. Expressões como: “é um segredo só nosso”, “não é para contar a ninguém”, “não estás bem, não foi nada disso”, “percebeste tudo errado”… são comuns. E quando são apanhados nas suas mentiras, procuram colocar a culpa em terceiros ou desviar o foco para o comportamento de outra pessoa para anular a descoberta.

São também, pessoas que entram em contradição. O que era uma verdade, uma regra, de repetente, se lhes convier, deixa de ser.

Utilizam a culpa e a vergonha para manipular a vítima. Por exemplo: “Eu sei o que é melhor para ti?”, “vais contrariar quem sabe?”, “és uma ingrata, depois de tudo o que eu já fiz por ti”…

Utilizam a vitimização, recorrendo a muitas distorções, omissões e generalizações. Por exemplo: “Eles uniram-se contra mim”. A instalação do medo é outra estratégia comum, em situações de abuso. O uso de ameaças, perseguição, retaliação… “vais ver o que te vai acontecer”, “a sério, experimenta e vais ver!”

6 - São exímios a instigar e a criar conflitos o que contribui para destruir, ou pelo menos, abalar fortemente as relações. Escuta, diálogo e negociação não são competências que apresentem naturalmente, embora possam adoptar comportamentos que façam crer que o fazem, quando lhes convém, como forma de manipulação. Utilizam uma agressividade-passiva para evitar o contacto, como demorar a responder a mensagens, fazer silêncio, até para rejeitarem, discriminarem ou expulsarem alguém.

7 - O que resta? Um rasto de destruição e a fuga. Vítimas de abusos veem a sua autoestima destruída ou muito fragilizada, a autoconfiança esvai-se, instala-se uma névoa de confusão, seguida da dúvida sobre quem são e quais as suas capacidades reais, sente-se uma insegurança que escala. Abre-se um vazio sem fim, escuro, uma dor mais profunda que as já então experimentadas, com momentos que oscilam entre um silêncio interior ensurdecedor e vozes estridentemente ensurdecedoras. Instalam-se fortes traumas emocionais. E perante todo este caos o abusador sai de cena - às vezes de mansinho - sem assumir qualquer tipo de responsabilidade.

Ao ganharmos consciência destas atitudes, o convite é o de percebermos e sentirmos que, na nossa condição humana, pode ser que partilhemos uma ou outra, ou até mais, atitudes semelhantes. Algumas revelar-se-ão num contexto mais específico, outras serão mais generalistas. Daí a importância de olharmos para dentro, com honestidade e humildade e agirmos a partir daí. Porque se é verdade que controlamos muito pouco, também é verdade que o pouco que controlamos é a diferença que faz a diferença.