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Crónicas

Caixa de óculos

No Laranjal os livros eram escassos como todas as outras coisas e não tinham boa fama

O Laranjal onde cresci era um lugar austero, de roupa lavada e casas sem quinquilharia. Não havia quadros nas paredes além de um crucifixo e umas imagens de santos e, em cima nos móveis, pousavam jarras e cinzeiros. As pessoas que viviam naquelas casas trabalhavam muito e ganhavam pouco, o dinheiro que sobrava ia para a gaveta da cómoda, ficava ali à espera de uma aflição, mais ou menos como a roupa de dormir. A minha mãe tinha uma gaveta cheia de camisas da noite para uma doença e para o hospital. Ninguém estava em condições de prever o futuro e, ao menos no meio do infortúnio, não faria má figura perante os doutores.

A única extravagância estava no quintal onde conviviam várias espécies de plantas nos canteiros do jardim e em vasos com flores de sombra e outras de sol, todas arrumadas em recantos por onde eu me arrastava ao sábado com a ingrata missão de varrer e limpar folhas e flores mortas. A exuberância mais ou menos caótica daquele quintal era uma arte e a minha mãe tinha orgulho nisso, em ver os carros de turismo a travar para tirar fotografias. Fora isso a nossa casa era como outras, rectangular, com portas e janelas, tal e qual como os desenhos da escola primária.

E as pessoas que lá viviam não eram diferentes dos vizinhos. O meu pai trabalhava muito, às vezes todos os dias da semana, sábado e domingo incluídos, e quando parava adormecia no sofá da sala ou na espreguiçadeira de lona à sombra da laranjeira com o rádio a pilhas ligado no relato da bola. A minha mãe bordava, atendia as outras mulheres que vinham buscar bordados, tratava do almoço e do jantar e, ao domingo à tarde, depois de arrumar a casa e lavar a loiça, penteava o cabelo e vestia uma roupa melhor para ir a casa das minhas tias e ficar por lá a conversar com as irmãs e as primas.

O meu irmão, o companheiro de todas as férias grandes da infância, levava três anos de avanço e, aos 12, por estar na idade de ir conhecer mundo ganhou asas e entrou no mundo dos rapazes. Embora fosse ainda o meu Duarte, com quem partilhava a mesa do almoço todos os dias, havia outro que fumava às escondidas, ia acampar, à praia, ao cinema e às matinés das discotecas. A minha tia Teresa até lhe ofereceu uma faca de mato e um chapéu ao Indiana Jones; a minha tia Conceição comprou-lhe um blusão da moda e, de repente, estava feito um homem, com voz grossa e umas borbulhas na testa.

E, claro, eu também vivia naquela casa igual às outras, naquele lugar austero, onde só existiam as coisas de que precisava. O resto ou era desnecessário ou luxo, a minha mãe não financiava nem uma coisa, nem outra. Eu aprendi depressa que não a comovia com amuos, birras ou o que fosse como bater com força a porta do quarto e chorar em cima da cama por não ter autorização para ir ao cinema, nem um vestido novo, daqueles mesmo bonitos das montras das lojas caras da cidade. Nós não tínhamos sequer um gira-discos onde pudesse afogar a insegurança e a ansiedade da adolescência a ouvir música.

E ser adolescente nos anos 80 sem direito a discos de vinil e gira-discos era quase remeter-se à não existência, mas foi lá, nesse sítio onde a música passava no rádio-gravador ao qual faltavam já uns botões, que cresci. O tempo, e sobrava muito, passava em cima do terraço a ver passar os autocarros e ouvir os gritos da rapaziada a mergulhar no Poço das Freiras ou a descer o caminho em carros de madeira e caixas de esfera. Também lia os jornais velhos deixados para trás nos quartos do Hotel Girassol, os livros dos meus primos e os que comprava com o dinheiro dos lanches. E depois de acabar lia mais uma vez porque as férias duravam três meses.

No Laranjal os livros eram escassos como todas as outras coisas e não tinham boa fama. As minhas tias e a minha mãe rondavam-me a ver se ainda tinha o juízo todo, não era bom uma rapariga na mudança da idade andar com o nariz enfiado nas letras. Por isso lia às escondidas, sozinha, em cima da cama, sem luz suficiente e sem compreender o motivo da preocupação. Ler era bom e foi o melhor de muitas férias, mesmo que me tenha valido, no fim da adolescência, umas dioptrias e uns óculos.