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Sobre as férias

Derivando as palavras “feira” e “férias” da mesma raiz latina “feria”, as duas de certo modo apontam para uns dias “diferentes” no nosso calendário. Sejam esses uns dias especificamente designados para os grandes mercados e exposições ou dias de descanso e feriados, são sempre tais que a maioria de nós marca, conforme o nosso interesse e profissão, nas suas agendas. Mas as “férias grandes” marcamos quase todos, porque têm a ver tanto connosco como com os nossos filhos. São férias para eles, férias para os seus educadores e férias para os seus pais, no sentido de se fugir um pouco à rotina de vaivéns diários, dias meticulosamente estruturados (sobretudo para famílias mais numerosas), e noites inexoravelmente curtas e insuficientes.

Hoje em dia, as férias de verão (seja quando for o verão conforme a latitude específica) já são um facto assumido, em torno do qual está também construída uma indústria de férias e ofertas de lazer e entretenimento. Contudo, a instituição das férias demorou bastante tempo até ser uniformizada e assumida na globalidade dos países, e isso dependeu muito dos sistemas educacionais do país e da região. Por exemplo, o sistema educativo europeu foi baseado no princípio da educação obrigatória – não no direito à educação mas no dever de frequentar a escola. Isso aconteceu pela primeira vez ainda em 1592, no território germânico de Pfalz-Zweibrücken. Depois, quase todas monarquias absolutistas na Europa adotaram esse princípio. A ideia da educação enquanto um direito individual, civil e humano apareceu apenas durante a Revolução Francesa.

No entanto, essas escolas eram sobretudo destinadas aos menos privilegiados e eram de atendimento obrigatório. As classes médias e altas tinham o privilégio de educar os seus filhos nas suas casas – o que era obrigatório não era a presença nas escolas, mas sim a educação em si. Aquando da separação da Igreja e do Estado, em vários países surgiram escolas particulares, na sua maioria católicas, sendo que a primeira Constituição a conceder este direito foi a da Bélgica, em 1831. O “direito à educação” na Europa não significava o direito da criança mas sim o dos pais e adultos a se encarregarem da educação dos filhos. Esse direito ficou consagrado na Declaração Universal de Direitos Humanos, emitida pelas Nações Unidas em 1948.

Nos Estados Unidos, o calendário escolar moderno tem as suas raízes na Reforma Escolar do séc. XIX, na qual se procurava obter a estandardização entre as áreas urbanas e rurais. Embora ainda subsista a ideia geral de que durante os meses de verão a escola parava para que as crianças pudessem ajudar nos trabalhos no campo, essa afirmação hoje em dia é descartada, devido ao facto do calendário agrário efetivamente indicar que a primavera e o outono são estações apropriadas para a plantação e a colheita.

Antes da Guerra Civil na América, as crianças nas áreas rurais iam à escola durante os meses mais quentes e mais frios, e ficavam em casa durante as duas estações atrás referidas, para ajudar aos pais. Nas cidades, o calendário escolar estendia-se, às vezes, ao longo do ano. Finalmente, na década de 1840, o reformador educativo, Horace Mann, propôs o conceito de férias de verão, o que acabou por fundar os dois calendários.

Foram dois fatores principais a influenciar a cristalização das férias de verão: o progresso tecnológico da sociedade e a consciência sociolaboral. O asfalto, vidro e metal aquecidos, nas cidades da sociedade industrial, significam um verão quase insuportável. O que antigamente era um privilégio dos mais abastecidos (viajar pela Europa depois da graduação), tornou-se geralmente acessível através das redes ferroviárias mais desenvolvidas e acessíveis, e os citadinos da classe média e alta começaram a abandonar as suas cidades quentes, poeirentas e malcheirosas durante o verão para evitar estes desconfortos, levando as crianças consigo. Na verdade, o ar condicionado só foi inventado em 1902 e ainda passaram décadas antes de ser geralmente acessível. No final do séc. XIX, as áreas urbanas então assumiram esta interrupção das atividades letivas como sendo de senso comum e as escolas rurais seguiram-se. Culturalmente, o tempo de lazer tornar-se-ia cada vez mais importante, uma vez que, com o advento dos sindicatos e horário laboral de oito horas, os adultos acabaram por ter mais tempo disponível para eles próprios.

Mesmo que as férias entre os anos letivos variem, conforme o país, entre as duas semanas e os três meses e meio, e mesmo que continuem as discussões sobre a validade desta interrupção, hoje em dia prevalece a corrente bem articulada pela psicóloga Lisa Damour em 2021: “É importante de se lembrar que fortalecer o músculo psicológico é muito semelhante ao processo de fortalecimento de músculo físico. Qualquer criança que já esteve num ginásio reconhece que ganha a força quando o período de esforço é seguido por um intervalo suficiente de recuperação.” Boas férias!