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Rússia e EUA trocam acusações na ONU em reunião sobre multilateralismo

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Foto ONU

Rússia e Estados Unidos (EUA) trocaram hoje acusações num debate convocado por Moscovo nas Nações Unidas (ONU) para abordar a "cooperação multilateral", cujos contornos foram classificados como "surreais" e "hipócritas" por diplomatas presentes na reunião.

O debate, subordinado ao tema "Cooperação multilateral no interesse de uma ordem mundial mais justa, democrática e sustentável", foi presidido por Serguei Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia - país que preside este mês o Conselho de Segurança -, que voltou a acusar o Ocidente de "interpretar a carta da ONU e o direito internacional de forma perversa e seletiva, de acordo com as instruções da Casa Branca [presidência norte-americana]".

"Sejamos francos, nem todos os Estados representados nesta sala reconhecem o princípio fundamental da Carta das Nações Unidas: a igualdade soberana de todos os Estados. Os EUA há muito que, através das palavras dos seus Presidentes, declararam o seu próprio excecionalismo", disse Lavrov, cujo país é acusado de violar a Carta fundadora da ONU quando invadiu a Ucrânia em fevereiro de 2022.

"Isto também se aplica à atitude de Washington para com os seus aliados, de quem exige obediência inquestionável, mesmo em detrimento dos seus interesses nacionais", acrescentou, avaliando que a posição norte-americana constitui "uma ameaça direta ao multilateralismo e ao direito internacional".

Numa declaração que durou cerca de 20 minutos e em que acusou os EUA de tentarem dominar a ordem internacional, Lavrov direcionou também as suas críticas à composição do Conselho de Segurança e à sub-representação de África, Ásia e América Latina no órgão, assim como o peso excessivo dos países ocidentais nas estruturas executivas do Secretariado da ONU, liderado por António Guterres.

Para evidenciar a hegemonia norte-americana, Lavrov citou uma frase da obra "Animal Farm", de Georges Orwell, considerada uma feroz sátira à União Soviética de Estaline.

"No século passado, George Orwell e a sua 'Animal Farm' já pressagiavam a essência desta ordem baseada em regras. Cito 'Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros'. Se cumprir e obedecer à vontade da hegemonia, poderá fazer o que quiser. Mas se ousar defender os seus interesses nacionais, será declarado pária e sancionado", observou o chefe da diplomacia russa.

"A política hegemónica de Washington não mudou durante décadas. Todos os acordos de segurança euro-atlânticos, sem exceção, baseiam-se em garantir o domínio dos EUA. Isto incluiu a subjugação da Europa e a contenção da Rússia", defendeu.

Por sua vez, a embaixadora norte-americana junto da ONU, Linda Thomas-Greenfield, apontou para a "ironia" e "hipocrisia" de um debate sobre cooperação multilateral ser convocado "por um membro do Conselho que demonstrou repetidamente que não leva esta questão a sério", acusando Moscovo um "comportamento abominável" mesmo antes da invasão da Ucrânia.

"Ao ouvir a declaração do representante russo pensei que estava na sala errada porque esta parecia ser uma sessão de lamentações sobre os Estados Unidos e o Ocidente, e quase não ouvi a palavra 'multilateralismo' ser mencionada", referiu a diplomata norte-americana.

Num dos momentos mais tensos da reunião, a embaixadora dirigiu-se diretamente a Lavrov para referir os cidadãos norte-americanos detidos por Moscovo enquanto desempenhavam funções profissionais ou "por estarem no lugar errado, na hora errada", como jornalistas ou desportistas.

"Ministro Lavrov, quero olhar nos seus olhos -- enquanto olha para o seu telemóvel -e dizer-lhe que não descansaremos até que Paul [Whelan, um ex-fuzileiro naval dos EUA detido na Rússia] e Evan [Gershkovich, jornalista americano detido na Rússia] voltem para casa, e a Rússia tenha cessado de uma vez por todas esta prática bárbara de manter peões humanos. E isso é uma promessa", frisou Thomas-Greenfield.

O representante da Coreia do Sul junto da ONU, Joonkook Hwang, foi um dos diplomatas que criticaram a convocatória deste debate, considerando "surreal" que a reunião sobre multilateralismo e ordem mundial fosse convocada pela Federação Russa, um país que forneceu uma "quantidade dolorosa de alimento para reflexão" sobre esse assunto.

Antes mesmo da reunião começar, cerca de 50 países, incluindo Portugal, denunciaram "a clara da hipocrisia da Rússia" ao convocar este debate, mas apelaram à comunidade internacional que "não se distraia das violações flagrantes da Carta da ONU por parte da Rússia e do seu abuso do Conselho de Segurança", ao mesmo tempo que Moscovo "tenta cinicamente apresentar-se como guardiã da ordem multilateral".

Os signatários apelaram ainda a todos aos Estados-membros da ONU que fornecem apoio material e político ao esforço de guerra russo na Ucrânia para pararem esse auxílio.

A Rússia é um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (a par da China, EUA, Reino Unido e França) e detém poder de veto.

A ofensiva militar russa no território ucraniano, lançada a 24 de fevereiro de 2022, mergulhou a Europa naquela que é considerada a crise de segurança mais grave desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).