Existem licenças que permitem a captura de milhares de quilos de lapas por dia nos mares da Madeira?
No rescaldo da Festa da Lapa, que decorreu no passado fim-de-semana, no Paul do Mar, muitas foram as vozes que se levantaram para apontar a falta deste molusco nos habituais canais de escoamento, bem como o preço demasiado elevado do produto que é muito apreciado por locais e turistas.
Entre as críticas apontadas, houve quem referisse a extensão do período de defeso, alegando ser demasiado longo, mas não faltou, também, quem criticasse o facto de as licenças de captura da lapa com fins comerciais possibilitarem a recolha de milhares de quilos por dia, levando a “ruptura de stock”.
Num dos comentários a uma das notícias do DIÁRIO sobre o tema, o leitor João Nunes dizia mesmo que “deviam era proibir as grandes traineiras de apanharem aos milhares de quilos”, complementando que “antigamente não havia esse negócio das lapas em grande escala e apanhava-se lapas todo o ano”. Nesse sentido, vamos tentar, aqui, esclarecer se há embarcações ou apanhadores que têm autorização para capturarem milhares de quilos de lapas por dia.
Na sua última visita oficial à freguesia do Paul do Mar, na passada sexta-feira, por ocasião da Festa da Lapa, que este ano foi organizada pela Casa do Povo e Junta de Freguesia locais, Miguel Albuquerque anunciou que o período de defeso da apanha da lapa, na Madeira, vai passar de cinco para seis meses.
Na ocasião, o presidente do Governo Regional fez questão de notar que a portaria regulamentar já estava pronta, devendo entrar em vigor nos próximos dias. Conforme referiu, a medida terá sido implementada “a pedido dos próprios profissionais" que sugerem a “necessidade de preservar os stocks existentes” e assegurar o estabelecimento de um período para protecção da reprodução da espécie.
Victor Hugo , 12 Julho 2024 - 19:56
De caminho disse que a nova regulamentação vai “apertar o cerco” a quem não cumprir com o estipulado, quer sejam os apanhadores com fins comerciais, quer os que o façam para consumo familiar.
O certo é que as críticas não se fizeram esperar. Nos comentários à notícia do DIÁRIO que dava conta desse alargamento do período de defeso, foram várias as posições assumidas, não faltando quem apontasse o dedo à ‘industrialização’ do processo de apanha, nomeadamente com recurso a embarcações e ao mergulho, que, diziam alguns leitores, poderá ultrapassar “os milhares de quilos por dia”.
Nesta validação dos factos vamos procurar, precisamente, confirmar que tipo de autorizações para a apanha da lapa existem na Madeira e quantos quilos podem ser capturados, em cada um dos casos, por dia, de modo a confirmarmos a veracidade ou não das afirmações proferidas.
Deviam era proibir as grandes traineiras de apanharem aos milhares de quilos. Antigamente não havia esse negócio das lapas em grande escala, apanhava-se lapas todo o ano e nunca houve ruptura de stock porque se apanhava quilos e não como hoje, quando se dá licenças para apanhar aos milhares. Vai acontecer como nos Açores, onde esteve tantos anos fechada apanha da lapa. João Nunes, eleitor do DIÁRIO, num comentário no Facebook
Tendo em conta que a nova regulamentação ainda não foi publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira (JORAM), vamos basear a análise na Portaria (n.º 151/2022) que, para todos os efeitos, está actualmente em vigor.
A apanha de lapas na Região foi, durante largos anos, uma actividade económica com carácter tradicional, muito ligada às populações litorais, que se dedicavam à apanha deste molusco nas zonas rochosas inter-mareais, com reflexos na gastronomia local.
Sandra S. Gonçalves , 30 Junho 2024 - 19:02
Mas, com o aumento a actividade turística, aumentou, também, a procura pelas lapas, que na Madeira são exploradas comercialmente através da lapa branca (‘Patella aspera’) e da lapa preta (‘Patella candei’). Os exemplares capturados têm de ter um tamanho mínimo de comprimento de concha de quatro centímetros.
Presentemente, existem duas modalidades de apanha da lapa, na Madeira: com fins comerciais; e com fins familiares. Só no primeiro caso é exigida licença. Pelo contrário, está isenta de qualquer licença a apanha de lapas com fins familiares exercida em zonas terrestres ou marítimas, tendo um limite de captura de 3kg / dia / praticante.
No caso da apanha com fins comerciais, quem se dedica a esta actividade tem de possuir, cumulativamente, o cartão de apanhador (maiores de 16 anos) e a licença de apanha de lapas. Existem dois tipos de licença consoante a apanha seja feita ou não com recurso a uma embarcação.
No licenciamento geral incluem as embarcações que se dedicam a esta prática, num total de nove embarcações/nove licenças por ano, com um máximo diário de 200 Kg/dia por embarcação, estipulado que foi por um diploma de 2006.
Já no licenciamento específico, incluir-se a licença anual sem utilização de embarcação (35 no total/ano), que, além do limite diário, é restrita a uma determinada área geográfica. Neste caso, o limite diário/licença é de 15 kg.
Estão definidas três zonas. A Zona A, com limite de 20 licenças, é constituída pelos concelhos do Funchal, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol, Calheta e Porto Moniz; a Zona B, com limire de 10 licenças, é constituída pelos concelhos de Santa Cruz, Machico, Santana e São Vicente; já a Zona C, com um máximo de cinco licenças, diz respeito ao concelho do Porto Santo.
Actualmente, o período de defeso é de cinco meses, entre 1 de Novembro e 31 de Março. No período em que decorre a apanha, quando com fins comerciais, a mesma está interdita aos domingos e feriados.
Questionada pelo DIÁRIO a este respeito, a Secretaria Regional de Agricultura, Pescas e Ambiente fez saber que, na presente época, encontram-se licenciadas para a apanha da lapa nove embarcações, bem como 19 apanhadores comerciais.
Adianta a mesma fonte que, entre 1 de Abril e o dia de ontem já haviam sido capturadas um total de 20,9 toneladas de lapas nos mares da Madeira. Nestas contas não entram as quantidades capturadas pelos apanhadores ‘lúdicos’/com fins familiares.
Pelo acima exposto, conclui-se que é legalmente impossível a qualquer embarcação capturar mil quilos de lapas por dia. Por conseguinte, são falsas as afirmações dos leitores do DIÁRIO que apontam para a existência, na Região, de licenças que permitem a captura dessas quantidades, pese embora, no conjunto das embarcações devidamente licenciadas essa quantidade diária seja facilmente ultrapassada.