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Crónicas

As dificuldades

A luz só faltava no fim do mundo e não havia quem se preocupasse com as pessoas que viviam lá

O lugar onde cresci era habitado por pessoas feitas numa vida difícil, onde faltava de tudo e não apenas o dinheiro. Ali, naquelas casas do caminho até para cima da igreja, ensinava-se cedo a arte de gerir a escassez que era a maneira de nos preparar para o futuro. E o futuro visto do início dos anos 80 não mostrava fartura. A água faltava nas torneiras nos dias quentes e a electricidade ia abaixo sem aviso e mesmo a meio da telenovela, naquele episódio em que o galã beijava a protagonista e dizia que a amava.

E depois de passar o episódio não havia maneira de ver, só se repetisse, mas na televisão ninguém se ia dar a esse trabalho por causa de gente como nós. Ou, como dizia a minha mãe enquanto procurava as velas e o candeeiro a petróleo, a luz só faltava no fim do mundo e não havia quem se preocupasse com as pessoas que viviam lá. “Se nem sequer temos luz no caminho”, resmungava, enquanto improvisava uma maneira de manter a vela de pé num pires de loiça.

A escassez também era isso, não havia um candelabro, mas um maço de velas compradas de propósito na venda e nunca estava à mão. A minha mãe dizia sempre que ia arranjar lugar certo, que não a apanhava assim segunda vez, mas esquecia-se. No dia a seguir e no dia depois desse o tempo seria ocupado pela necessidade de resolver outro problema, mais grave, mais imediato como arranjar um depósito para colocar em cima do terraço e ter uma reserva de água da câmara.

A rede que não estava preparada para as ambições das pessoas do fim do mundo. O mundo novo e a democracia começavam a assentar arraiais lá por cima e, se o 25 de Abril era para todos, então os pobres queriam deixar de ir à fonte com baldes e alguidares e ter uma torneira em casa sem passar a vergonha de fazer fila na fonte à noitinha e na hora do almoço. E foi injusto voltar à fonte mesmo depois de ter um contador e pagar a conta, não se imagina a indignação nesses verões.

Não sei se deu para um abaixo-assinado, mas queixas houve, que um direito era um direito e água e luz todos deviam ter. E, do que me lembro, não foi suficiente para mudar o voto para a junta. A escassez enchia de revolta, havia falatório para semanas no autocarro, na paragem, no adro da igreja e nas mulheres quando vinham entregar os bordados, ainda assim nem o esquecimento fazia perder a esperança ou a paciência, qualidades que se treinava desde cedo lá por cima.

O tempo ia resolver, todos acreditavam nisso ou eram enrolados na junta e na câmara pelos doutores, com títulos e maneiras de falar educadas, sobretudo complicadas e estranhas às pessoas que não queriam voltar a ir buscar água em baldes para tomar banho e fazer o jantar. No fim, valia a esperança, que podia não ser perfeito, mas estava melhor. A minha mãe, as minhas tias, o meu pai, todos diziam que estava melhor, muito melhor, diziam isso na altura e morreram convictos desta evolução.

Esses verões sem água e ainda sem iluminação no caminho transportam-me sempre à infância. Apesar das dificuldades e das filas na fonte, a memória de adormecer a ouvir os depósitos do terraço a encher, enquanto os faróis de um carro quebravam o escuro do meu quarto é das mais reconfortantes, traz-me de volta as férias grandes no Laranjal.