Mundo avesso e às avessas. E o Homem de amanhã?

As crises e os problemas atuais e tantos sofrimentos aflitivos são um enigma que pede compreensão e aço. Será que se pode compreender? As pessoas vivem sempre em crise por dentro de si mesmas. Por fora delas, os acontecimentos, mudanças, opiniões e modas provocam outros males e alguns bastante pesados. Pode a pessoa, sem dar por isso, tornar inconscientes, em si, conteúdos incómodos para não lhe causarem sofrimento e ter que aguentar piores consequências para si e os outros? Embora pareça um trocadilho sem sentido é o que pode acontecer. De facto, dizer: “inconscientemente tornar inconscientes” é estranho, mas a psicologia diz que tem sentido. Os distúrbios neuróticos provocados por essas pedras no sapato, inconscientes, requerem terapias psicológicas que libertem as pessoas dos maus efeitos. O remédio para tantos males consiste na ajuda psicológica para trazer à consciência o que está inconsciente e oculto para evitar esses maus efeitos. Seá como que pôr a direito o que está às avessas, pôr às claras o que está escondido para viver melhor.

A psicologia, na linha da psicanálise a partir de Freud e outros autores, teorizou o termo recalcamento como processo dinâmico e inconsciente de a pessoa ocultar, no inconsciente, realidades, lembranças e experiências insuportáveis se forem lembradas. E inventou a psicanálise como psicoterapia para as trazer ao consciente e as gerir sem perturbações neuróticas.

Importa acrescentar que estes processos são apenas uma parte dos problemas. Vivemos hoje tantas mudanças ao mesmo tempo que elas concorrem para multiplicar os modos humanos de funcionar mal. De entre estes modos, é ativado o processo de repressão consciente em virtude de influências do ambiente social: pressões informais para se conformar com modas, consumos e caprichos meio estúpidos. As pertenças familiares, de classe, ideológicas, religiosas, políticas e profissionais usam chavões, lugares comuns, blá, blá, blás, para pressionar as pessoas, por exemplo, a sentirem-se culpadas se não se conformam com essas pressões; e, ao contrário, para não ter culpa de quase nenhuns dos gravíssimos males sociais. E pior, ainda, a considerar os outros os culpados do que vai correndo mal. Para qualquer problema, sofrimento, baixa natalidade, desemprego, salários baixos, falta de casas, pobres nas ruas, idosos abandonados, fome, guerras, corrução, a culpa é sempre dos outros.

Entretanto, as pressões sociais através de publicidades enganosas e as modas de ser mais bem vistos que os outros, nas grandezas da fama, vão levando muitos a deixar-se dominar pelo agir fácil e sem esforço, o prazer desligado do bem comum, os interesses de marca egoísta e a indiferença pelos outros. E ainda forçam a pessoa a não ter qualquer sentido de culpa por se dar a gastos e consumos de prazer nocivos para a própria saúde e bem-estar alheio, e a gastos de utilidade fútil. Algumas tipologias da personalidade distinguem três tipos de tendências e pulsões que motivam comportamentos correspondentes: cerebrais (prazer intelectual, valores espirituais, especulação, imagens, jogos de redes sociais, drogas e outros comportamentos obsessivos); torácicas (coração, emoções, amizade, amor, fazer o bem, ser perdulário em dar); e abdominais (paixão, prazeres sexuais, convívios de consumos gastronómicos, comes e bebes, festas). Estas categorias não impedem que o cérebro associe todas as experiências e crie atalhos entre os três níveis. Lembro-me de um amigo me iniciar nos tipos de músicas relacionadas com estes tipos. E de como as músicas de certos festivais e temas marciais estimulam mais a região abdominal que a cerebral e a torácica.

Os especialistas de saúde mental, por seu lado, vão alertando para novos riscos das redes sociais que estão a dominar as pessoas e a vida social e económica, e a fazer definhar algumas capacidades dos jovens e desempregados que irão fazer falta nalgumas profissões por baixas dos idosos. Outros alertam para os consumos excessivos de alimentos e bebidas alcoólicas que concorrem para aumentar a invalidez por obesidade e distúrbios ligados ao álcool.

Alguém perguntará que têm a ver os recalcamentos inconscientes e as repressões conscientes, que estão na base destes comportamentos com as crises graves que assolam a humanidade? Os conteúdos empurrados para o inconsciente e os reprimidos aumentam os males das crises. Levam ao inverso das ações boas que seria precisas para evitar esses males. As ações saudáveis e benéficas ficam inativas. Fica a indiferença e falta de solidariedade entre o Ocidente, abastado e gastador em necessidades muito secundárias e até nocivas, e o Sul cheio de necessidades fundamentais para a vida, a saúde e o desenvolvimento humano. Numa palavra, funcionam os comportamentos nocivos para a saúde e o sentido da vida que são o avesso da construção e desenvolvimento do homem. Fica o mundo de pernas para o ar. Cultura às avessas poderá evitar as crises e os problemas? Não estará a merecer o alerta de Jesus aos seus discípulos: Acautelai-vos dos falsos profetas. Pelos frutos os conhecereis. Toda a árvore boa dá bons frutos e toda a árvore má dá maus frutos.(Cf. Mt. 7,15-20). S. Pedro, santo popular, esteve do avesso, mas pôs-se direito, converteu-se, e deu bons frutos.

Aires Gameiro