Só há inclusão onde houver coração
Não há pessoas incompletas. O nosso olhar é que pode estar incompleto. O nosso coração é que pode ainda estar enclausurado na tirania das expectativas, da narrativa do que é esperado, e não ter ainda espaço para acolher e amar uma pessoa que consideramos ‘diferente’
Se uma criança neurotípica, dita ‘normal’ muda o centro de gravidade e o ritmo dos dias, tendo a capacidade de colocar de pernas para o ar a vida dos pais, uma criança neurodivergente, dita ‘diferente’ ou ‘especial’, será sempre um sismo, que se dá de uma vez só ou com várias réplicas, de maior ou menor intensidade. E um sismo que puxa, distende, sacode quem cuida dela. É desconhecido. Por isso é que assusta, dói, e deixa um rasto de insegurança. Mas essa dor é dor de crescimento, é a dor de quem está a abrir mão das expetativas acerca de quem a criança deveria ser. É a dor de quem está a alargar o coração. A dor da aceitação, e de quem está a crescer, lado-a-lado com aquela criança. Através da deficiência dos nossos filhos, curamos as nossas próprias deficiências. Nós e todos os que estão comprometidos em acolher, incluir e guiar os que são diferentes.
A minha filha mais velha recebeu o primeiro diagnóstico quando tinha quase quatro anos. Uma criança com um fenótipo típico e cuja mais avançada ciência não sabia, e não sabe até hoje, explicar porque é que é mais diferente que os demais.
Recusei sempre ceder à pressão, ora silenciosa, ora ignorante dos que apregoavam “ela tem é a mimo a mais”, “ela é assim por tua culpa”, “não esperes nada dela”. Dei a volta a meio mundo, consultei médicos e especialistas diversos, em distintas áreas, em vários continentes. Nunca houve respostas.
Amo-a incondicionalmente desde que descobri que habitava o meu ventre, e ainda assim pensei, durante alguns anos, que a bebé desejada precisava de cura. Só que não. Voltei a estudar. Primeiro, o modelo mais avançado de comunicação que se conhece – neurolinguística, depois neurociência, neurofisiologia, trauma… Nunca mais parei. Muni-me de ferramentas de excelência para comunicar comigo própria, com o desconforto que sentia, por sentir não estar à altura da filha que tinha. Isso e porque queria conectar-me comigo e com ela. Num determinado estágio compreendi que seria útil partilhar este conhecimento com outros pais, educadores, profissionais. O modelo que eu desenvolvera - a parentalidade generativa - era uma forma de vida que funcionava com seres humanos, independentemente de terem ou não, mais ou menos dificuldades. A “fórmula”, passa por ‘destralhar’ a nossa mochila emocional e de crenças instaladas pelas gerações anteriores, pela sociedade e pelo meio envolvente. De desaprendrer, criando espaço para programar o conhecimento fidedigno.
O meu contributo viria a ser globalmente reconhecido em 2019, por especialistas entre eles, psicólogos, psiquiatras, pedagogos educacionais e sociais. Em Londres, recebia então, o ‘NLP Award in Education’, a maior distinção que existe no campo da neurolinguística. No Reino Unido e nos Estados Unidos foram muitos os profissionais da educação que adoptaram a proposta nas suas casas e escolas. Em Portugal, a aceitação foi e é lenta. E, se neste País, até ao primeiro ciclo encontrei escolas que incluíssem e dessem resposta humana e técnica adequada às necessidades da minha filha, a partir do primeiro ano descobrimos o quão cruel pode ser lidar com os que não querem aceitar a diferença. A educação especial continua a ser o parente pobre da educação em Portugal.
Deixámos para trás Cascais rumo ao Funchal, depois de eu falar telefonicamente com a Professora Julieta Passos, do antigo colégio do Bom Jesus. O meu coração escancarou-me o caminho. Estava certo. A Constança foi feliz, com direito a ser quem é, incluída por todos. Por questões profissionais regressámos ao continente no fim do primeiro ciclo e no sexto ano a minha filha viu fecharem-se na cara, as portas de todos os colégios aos quais solicitei a sua admissão. Foram muitos. Demasiados. Foi literalmente atirada, pelo sistema, para uma escola pública. Garantiram-me que aquela onde tinha sido colocada seria a mais capacitada para a acolher. Frequentou-a ao longo de um ano. Assistiu, entre outras cueldades, à diretora da unidade esbofetear um aluno, com um síndroma raro, só porque este não conseguia fazer a auto-regulação. A dita professora, com o cérebro maduro, mais de 30 anos de experiência na área do ensino especial, também não sabia fazer a auto-regulação, menos ainda a co-regulação. A única aluna verbal era a Constança. Foi instruída pela agressora para guardar segredo. O caso foi denunciado na PJ. O Ministério da Educação fez o que burocraticamente é possível e esbarrou numa teia bem montada de uma direção escolar conivente com uma professora obviamente inqualificada e desumana. Não vou alongar-me em pormenores. Pequenos poderes, grandes prejuízos para a sociedade.
Dois anos depois do regresso à Madeira, respiro de alívio. Foi nesta ilha que a minha filha encontrou uma escola pública que a acolheu e acolhe com humanismo e competência. Professoras da unidade e técnicos que num quadro de educação que tem cada vez menos de inclusivo, se desdobram para responder às necessidades destas crianças, jovens e respetivas famílias.
O caminho para a educação inclusiva não se faz por decreto, meus senhores! Menos ainda, numa escola de massas. Anunciou-se uma escola pública inclusiva, onde todos, independentemente da gravidade dos seus problemas, teriam lugar. É mentira! Porque um lugar sem meios, nem recursos, para responder às necessidades não inclui - exclui. Apesar da cuidada e esforçada atenção das equipas escolares, subsiste a crónica falta de recursos e a permanente ausência de resposta às necessidades mais complexas dos seus educandos. E de quem cuida, também. Que impacto tem o tipo de exposição e vivências na saúde mental de quem cuida? Estarão todos os professores preparados para lidar com estes alunos? Não estão. E essa é outra dificuldade com a qual têm de lidar também, os professores especializados e as direções escolares. Todos queremos a inclusão. Mas em escolas sem equipas multidisciplinares adequadas e recursos necessários, mesmo com turmas reduzidas de 20 alunos, uma disposição legal frequentemente incumprida, é impossível criar as condições pedagógicas e terapêuticas que garantam o são desenvolvimento de crianças e jovens.
E depois, há os concursos, há o excesso de burocracia, rótulos e falta o essencial que é colocar todos estes formalismos em segundo plano e valorizar o peso do amor e do apego de um professor aos seus alunos ao longo do ano letivo, o impacto que esse coração e forma de estar teve no seu crescimento enquanto pessoa.
Sigo de mãos dadas e com o meu coração entregue a todos os docentes e profissionais que abraçam diariamente a minha filha e o seu potencial, muito mais do que as suas limitações. Faço assim, um merecido reconhecimento público à unidade de ensino especializado da Escola Gonçalves Zarco, em particular às professoras Suzel e Bibiana, e aos assistentes técnicos Ana Rita, Ivone e Diogo que diariamente contribuem para o bem-estar físico e emocional, para a felicidade e desenvolvimento da minha filha Constança e de todos os seus colegas. Por contribuírem para que todas as noites, na nossa família, deitemos a cabeça na almofada e durmamos com o coração sereno por saber que, pelo menos, a Constança e os seus companheiros, podem ser quem são, em amor e inclusão (além do que o sistema educativo insiste em permitir).