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Crónicas

Na sombra da laranjeira do quintal

No Laranjal não faltavam histórias de adolescentes que enlouqueciam na mudança da idade

As férias cansavam muito e sei o absurdo que isto me parece agora, mas lá por cima os dias quentes e abafados do Verão eram interrompidos apenas pelas festas da paróquia e até o arraial perdia fulgor a cada ano. As raparigas da minha geração descobriam interesses longe da procissão e das rifas no bazar e, tal como eu, queriam ir acampar no rali. A banda a tocar a música do Dallas no coreto do descampado, no meio da poeira e mal iluminada pelas luzes do facho da igreja, não conseguia disfarçar a decadência, o fim de uma certa maneira de viver e festejar em comunidade.

O entusiasmo de ver chegar os homens das bandeiras e de ouvir os ensaios de som na barraca do Bingo caiu, festa após festa, embora ainda andasse por lá, com a minha mãe, a comprar rifas e a olhar de longe para os rapazes mais velhos, os que chegavam de mota ou já tinham carro e procuravam uma noiva. Eu não queira ficar noiva, mas tinha 15 anos e andava aos pares, a contar segredos com um riso nervoso como fazem todas as miúdas. E mesmo sem brilho, a festa da paróquia era melhor do que vinha a seguir: as mesmas manhãs e tardes sem história em cima do terraço a pensar numa vida cheia de glamour.

Eu também lia em cima do terraço ou na sombra da laranjeira do quintal. Os livros vinham da casa da minha tia Alice onde havia um espólio valioso dentro de gavetas, armários e caixas, alguns novos e por estrear. A maior parte era do meu primo Vítor, que vivia em São Vicente e tinha prometido levar tudo depois, quando acabasse de construir a casa. O gosto literário do meu primo era uma mistura de heróis da banda desenhada dos anos 60 e de títulos revolucionários das coleções do Círculo de Leitores, inspirado pela moda de esquerda que sacudiu a juventude a seguir ao 25 de Abril. E foi de lá que tirei o Triunfo dos Porcos e tentei ler o Testamento Final de Nikita Kruchtchev.

A política era o tema mais importante dos noticiários e todos sabíamos que o mundo estava dividido entre russos e americanos, mas os meus conhecimentos não chegavam até à crise dos mísseis de Cuba e ao tempo depois da morte de Estaline. Aquele era só mais um russo comunista e eu não tinha recursos intelectuais para entender ou alguém para tirar dúvidas. As minhas tias de livros só conheciam a história de Simão e Teresa do Amor de Perdição; a minha mãe gostava do Júlio Diniz por causa das radionovelas. E todas consideravam perigoso andar a matar a cabeça com livros numa idade tão instável.

No Laranjal não faltavam histórias de adolescentes que enlouqueciam na mudança da idade e depois de evidenciar sintomas como ler muito ou estudar muito. Havia outras versões como as que tinham lavado a cabeça durante o período, essas também ficavam loucas. Eu estava, por isso, numa situação de risco agravado e só por teimosia persistia naquele gosto de enfiar a cabeça nos livros para tentar sobreviver às férias de três meses num lugar onde o dia seguinte seria certamente igual ao que acabava quando o sol desaparecia por detrás da encosta do Jamboto.

Parte da pessoa que sou fez-se nessas tardes a ler livros escolhidos por alguém mais velho e contra a vontade das tias e da mãe, tão zelosas da minha saúde mental. O único que se sentiu orgulhoso foi o meu pai, o homem que mal sabia assinar o nome e carregou a vida inteira o fardo de ser analfabeto e incapaz de ler um livro com muitas letras e muitas páginas.