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A Lei Eleitoral da Madeira 1

A dinâmica própria da vida política é sempre algo que supera e que muitas vezes surpreende a (...) “engenharia eleitoral”

Em consequência do último resultado eleitoral tem vindo a falar-se da “injustiça” de uma lei que não permite facilmente obter maiorias absolutas na composição do parlamento quando os votos não atingem expressões correspondentes. Considero que muitas das disposições da lei devem ser revistas, nomeadamente no que se refere à necessidade de adaptar á realidade tecnológica de hoje, à simplificação de procedimentos, ao voto em mobilidade permitindo que os eleitores possam votar independentemente do local onde se encontrem (como vai acontecer domingo próximo). Mas não é essa a questão colocada!

Na controvérsia lançada ninguém pôs em causa o sistema proporcional (constitucionalmente obrigatório) nem a conversão dos votos em mandatos feita de acordo com o método da média mais alta de Hondt, mas circunscreveu-se à existência de um circulo único, já que para além das eleições ao Parlamento Europeu, são as únicas eleições no País onde se escolhe órgãos colegiais, a ter um só circulo de apuramento.

As eleições para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira são atualmente reguladas pela Lei Orgânica nº 1/2006, de 13 de Fevereiro, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei Orgânica nº 1/2009, de 19 de Janeiro. Alteraram a primeira lei eleitoral para as eleições regionais madeirenses (ao que consta escrita por Almeida Santos) seja pela introdução de um único círculo, seja pela definição de um número fixo de deputados a eleger.

A alteração foi feita em duas etapas:

- em consequência do Acórdão do Tribunal Constitucional, nº 199/2000, de 2 de maio, que considerou inconstitucional – por violação do princípio da representação proporcional – a existência de círculos eleitorais com a eleição de apenas um deputado, para além de não haver justificação constitucional para a existência de círculos concelhios (ao contrário dos círculos açorianos correspondentes à realidade insular). Em consequência, a alteração do Estatuto Político-Administrativo, veio definir que nenhum círculo eleitoral poderia eleger um número inferior a dois deputados, o que se manteve até à aprovação da lei eleitoral em vigor;

- Um acordo entre as forças politicas mais representativas, patrocinado pelo Presidente da Republica de então (Jorge Sampaio), que determinou a existência de um só circulo.  Esse acordo primeiramente quis pôr termo a um aumento exponencial do número de deputados que eram eleitos (em 2004 elegemos 68!) não sendo fácil conciliar a limitação do número de deputados com a existência dos anteriores círculos e a obrigação de respeitar a proporcionalidade constitucional. 

Na altura governava o País, José Sócrates, na Madeira, Alberto João Jardim e era líder do PS Madeira, Jacinto Serrão. As relações financeiras entre a Republica e a Região estavam ao rubro (houve retenções de verbas e não autorizações de empréstimos) e é possível que o acordo tivesse também por objetivo uma normalização dessas relações.

Mas será verdade que a instabilidade expressa na dificuldade em termos maiorias absolutas de deputados a apoiar o governo resulta, essencialmente, da nova lei eleitoral e do círculo único ou terão sido outros fatores, alheios a essa mesma lei, a determinar esses novos quadros políticos?

A pergunta ganha eventual amplitude, quando percebemos, pelos resultados registados, que se se tivessem mantido os antigos círculos, a força política eleitoralmente vencedora – PSD em 2024 e PSD/CDS-PP em 2023 – teriam alcançado a maioria absoluta dos eleitos. Mas ainda que o dado objetivo – os resultados eleitorais por Concelho – seja intransponível, outra dúvida, pode também colocar-se: votariam os eleitores exatamente do mesmo modo que votaram, caso a Madeira mantivesse os onze círculos eleitorais?

É verdade que esta nova lei eleitoral veio facilitar e permitir a entrada de mais partidos políticos na Assembleia, desde logo pelo aproveitamento de todos os votos obtidos, algo que não se verificava quando não existia um único colégio eleitoral. Antes da existência do círculo único a representação no Parlamento oscilou entre um mínimo de 4 e um máximo de 6 partidos; após a aprovação da nova lei eleitoral, a representação variou entre um mínimo de 5 e um máximo de 9 partidos.

Mas uma coisa também é certa: em três dos seis atos eleitorais realizados após a aprovação da nova lei eleitoral, a força política vencedora elegeu a maioria absoluta dos deputados (em 2007, em 2011 e em 2015), o que nos mostra não existir uma imediata e taxativa correspondência entre resultados/deputados eleitos e a nova lei eleitoral/círculo único. A dinâmica própria da vida política é sempre algo que supera e que muitas vezes surpreende a chamada “engenharia eleitoral”. É certo que os sistemas eleitorais, os métodos de conversão dos votos em mandatos, bem como a configuração dos círculos eleitorais, nunca apontam para a neutralidade. A adoção de um ou de outro modelo indicam sempre um determinado objetivo, pelo que a representação que resulta dos votos nunca pode ser considerada alheia, ou completamente alheia, à lei eleitoral. Mas uma coisa será a compreensão da relação entre a lei ou o sistema eleitoral e os mandatos, outra é desvalorizar, ou tender a desvalorizar, o que nunca pode ser desvalorizado: a vontade e a decisão de cada eleitor em cada uma das eleições em que intervém! E esta vontade, bem como a sua variação, pode traduzir resultados muitos diferentes perante o mesmo quadro legal.

Tendemos a considerar que a adesão dos eleitores ao “voto útil” no sentido de ser chamado a eleger um líder para presidente do Governo que aos seus olhos tenha maior possibilidade de lá chegar e a existência real de uma alternativa, são suficientes para afastar a dificuldade em obter maiorias de apoio a um Governo. Isto sem falar da necessidade de haver um novo comportamento pós-eleitoral de entendimento entre os partidos, consentâneo com a representação proporcional e a necessária estabilidade.

Não nos parece justo atribuir os “males de uma maior minoria que é a menor maioria obtida” a uma lei eleitoral que acima de tudo tornou mais correspondente os mandatos ao números de votos e sensatamente limitou a  espiral de aumento de deputados a que se estava a assistir!

  1 - Este artigo é consequente a um trabalho que publiquei juntamente com MANUEL MONTEIRO e RODRIGO FARINHA na revista Polis n.º 8, II Serie Julho/Dezembro de 2023, onde muitas conclusões são aqui reproduzidas.