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Crónicas

Toda a incerteza da infância

Os joelhos esfolados não contavam como doença e as feridas relevantes resumiam-se às que precisavam de pontos

Eu cresci num tempo onde nada era garantido a não ser a morte. A minha mãe costumava repetir isso muitas vezes, talvez para lembrar que a morte espreitava pelo caminho de cada vez que se apanhava boleia na parte detrás dos camiões das canas ou quando se descia os degraus da entrada em cima de uma tábua lisa para aterrar ao meio dos vasos das orquídeas.

Não sei bem como é que as mães lidavam com os perigos, nem como nos largavam na fazenda ou no caminho, entregues apenas ao nosso discernimento e ao sentido de sobrevivência. Aquelas tardes inteiras a vasculhar na ribeira, com os pés enfiados na água e a lama a chegar aos tornozelos estavam cheias de riscos. Podíamos espetar um prego enferrujado num pé e apanhar tétano, podíamos escorregar e acertar com a cabeça numa pedra, mas todos os dias chegávamos a casa mais ou menos inteiros.

Os joelhos esfolados não contavam como doença e as feridas relevantes resumiam-se às que precisavam de pontos. Tudo o resto que nos acontecia não tinha sequer direito a história. A minha mãe não se preocupava com os trambolhões, as nódoas negras e o sangue que saía dos dedos grandes dos pés quando se acertava numa pedra. Eu fui duas vezes ao hospital para coser a testa e o queixo, o que era, nos padrões da casa do Laranjal, um exagero.

As minhas tias e a minha mãe tinham como referência o meu irmão, o rapazinho magro e ágil, que subia às árvores, saltava o terraço e andava com a elegância de um gato por cima dos muros. E ninguém lhe conhecia ferimentos de guerra, embora tivesse ido parar ao hospital na vez em que espetou uma flauta de cana na garganta. O que, repetiam elas, fora apenas um acidente e não se podia comparar com os meus pontos na testa e no queixo, que isso era resultado da minha inabilidade motora congénita.

E das botas ortopédicas, essa invenção dos anos 70 que acabou nos meus pés chatos e não combinava com as levadas da fazenda, os degraus de pedra e a vida das crianças lá por cima. A melhor parte da infância passei descalça; a outra com os pés aprisionados nas botas e com a minha mãe prometer-me que, um dia, ia usar as sandálias bonitas que as outras miúdas calçavam e ia deixar de parecer esquisita.

Eu não tinha apenas a obrigação de sobreviver a todos os imponderáveis que me esperavam na rua e de cada vez que ia brincar com os outros miúdos da vizinhança. O meu sentido de sobrevivência exigia que me defendesse da troça de ser aselha e calçar botas ortopédicas e cair mais vezes do que devia. E essa necessidade foi decisiva enquanto crescia naquele lugar, naquele tempo em que nada estava garantido. Todas as noites a minha mãe e o meu pai falavam de dinheiro, do que não tinham e de tudo o que precisavam.

Mas o meu pai também me falava de coisas bonitas, dos países que havia no mundo, do saber dos livros que ele não conseguia ler e do céu, onde me apontava as constelações e dava nome às estrelas nas noites de Verão, quando vínhamos da casa das minhas tias. Eu era a filha, a menina dos olhos daquele homem grande e pouca diferença fazia ser gordinha e usar botas ortopédicas, o melhor dele seria sempre para mim e isso foi o que mais seguro e garantido que tive.