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Crónicas

A Bolha e o Teclado

1. Estes textos já estão escritos há algum tempo. Mas como não perderam actualidade…

2. Fazer política a pensar exclusivamente na bolha em que vivemos implica uma visão limitada e o andar desligado da realidade, pois denota falta de leitura, polarização, conflito, ineficácia, desconfiança e deslegitimação. Cada um desses aspectos contraria os princípios fundamentais do liberalismo, que valorizam a liberdade individual, a igualdade de oportunidades e a governação transparente e responsável.

Quando políticos ou decisores de políticas se concentram exclusivamente na sua própria bolha social, cultural ou ideológica, acabam por ter uma visão estreita e distorcida da realidade. Essa visão limitada ocorre porque eles tendem a ouvir e a considerar apenas as opiniões e necessidades daqueles que partilham as suas próprias perspetivas. Por exemplo, um político que interage principalmente com empresários pode subestimar os desafios enfrentados pelos trabalhadores ou pelos desempregados, pode não fazer ideia do que é viver com um ordenado mínimo e à beira da pobreza. Este isolamento resulta em leituras que não refletem a diversidade das experiências e necessidades, limitando a capacidade de desenvolver soluções abrangentes que beneficiem a todos.

No contexto do liberalismo, é essencial reconhecer que a liberdade e o progresso individual só podem ser plenamente realizados quando há uma compreensão lata das condições sociais e económicas de todos os cidadãos. Políticas que ignoram esta diversidade acabam por restringir a liberdade e as oportunidades daqueles que não fazem parte da bolha de quem pode decidir e/ou influenciar a decisão.

A falta de inclusividade nas políticas públicas é uma consequência directa do pensar dentro da bolha. Uma abordagem centrada num espaço limitado que tomamos como sendo o mundo, leva à exclusão do resto. Políticas eficazes devem ter em vista o bem comum, reconhecendo e abordando as necessidades de todos os segmentos da sociedade. Quando esses grupos são ignorados, as suas necessidades específicas não são atendidas, perpetuando desigualdades e injustiças, que levam ao afastamento ou ao não entendimento da mensagem a passar.

O liberalismo defende a igualdade de oportunidades para todos, independentemente das suas origens. Para que esta igualdade seja real, é crucial que as políticas sejam desenhadas para garantir que todos os indivíduos tenham as mesmas hipóteses de prosperar.

A política da bolha contribui significativamente para a polarização. Quando diferentes grupos sociais e ideológicos não se comunicam entre si, as suas diferenças acentuam-se e o diálogo dificulta-se. Esta falta de comunicação leva a uma sociedade fragmentada, onde os conflitos são prováveis e as soluções consensuais mais difíceis de alcançar. A polarização extrema pode paralisar a governação, dificultando a implementação de políticas eficazes e necessárias.

Os princípios liberais promovem o diálogo e o debate aberto como meios para alcançar o consenso e a melhor solução possível para os problemas. A polarização impede este processo, criando divisões que dificultam a colaboração e a formulação de políticas equilibradas e justas. Para que a liberdade e a justiça prevaleçam, é essencial promover um ambiente de comunicação e entendimento mútuo.

Políticas desenvolvidas numa bolha tendem a ser inadequadas para resolver problemas complexos que afectam diferentes segmentos da população. O liberalismo valoriza a eficiência e a eficácia na governação, defendendo que as políticas devem ser desenhadas para maximizar o bem-estar individual e colectivo. Soluções ineficazes representam um desperdício de recursos e uma falha em atender às necessidades dos cidadãos, contrariando os princípios de governação responsável e eficiente.

Quando as políticas são percebidas como beneficiando apenas certos grupos, isso pode levar à desconfiança e à deslegitimação das instituições políticas. Quando a população sente que o governo e as instituições políticas representam apenas uma parte da sociedade, a confiança nas instituições democráticas diminui. Isso pode resultar em baixa participação eleitoral, protestos, extremismos, e, em casos extremos, violência. A legitimidade das instituições depende da sua capacidade de representar e servir a todos os cidadãos de maneira justa e equitativa.

A desconfiança e a falta de legitimidade das instituições são contrárias ao princípio liberal de um governo transparente e responsável. A confiança nas instituições é fundamental para o funcionamento saudável de uma democracia liberal. Políticas transparentes são essenciais para garantir que o governo é visto como legítimo e digno de confiança.

Para superar este afastamento, é essencial que nos envolvamos directamente com o todo, que reunamos dados abrangentes, que consultemos especialistas e todos os que trabalham diretamente com as comunidades. Implementar mecanismos de recolha de “feedback” contínuo dos cidadãos sobre as políticas em vigor e estar disposto a fazer ajustes conforme necessário também é fundamental.

Para uma governação eficaz e justa, é essencial que os políticos e formuladores de políticas considerem uma ampla gama de perspetivas e experiências. Isso promove uma tomada de decisão mais equilibrada e representa melhor a diversidade da sociedade. Envolver-se com diferentes grupos, ouvir as suas necessidades e experiências, e trabalhar para desenvolver políticas inclusivas é fundamental para o sucesso e a legitimidade da governação democrática. Ao adotar essas práticas, os formuladores de políticas podem criar soluções mais eficazes, justas e sustentáveis, que realmente atendam às necessidades de todos os cidadãos, em consonância com os princípios liberais de liberdade, igualdade de oportunidades e transparência na governação.

3. O “herói do teclado” é uma espécie fascinante da fauna digital contemporânea. Este ser “corajoso”, que desabrocha na segurança da sua casa, protegido pelo anonimato, é um verdadeiro gladiador dos comentários “online”. Armado com insultos, ameaças e mentiras, lança-se em batalhas verbais como se estivesse a salvar o mundo de alguma catástrofe iminente.

Especialista em “bullying”, o herói do teclado encontra um prazer quase sádico em ridicularizar os outros. Ataca sem piedade, usando palavras afiadas que procuram insultar, visando qualquer característica que possa ferir: aparência, crenças, escolhas pessoais. E tudo isto, claro, com a nobre missão de reafirmar a superioridade intelectual e moral de um asno.

A mentira e as leituras enviesadas são a sua língua franca. Nada como um bom palavrão ou uma frase bem colocada para procurar derrubar a autoestima de alguém. Têm um especial prazer em mostrar falta de educação e respeito, como se cada ofensa fosse uma medalha de mérito. A verdade é que, provavelmente, nunca terão a coragem de dizer metade das aleivosias que debitam, cara a cara.

As ameaças são um capítulo à parte. O herói do teclado adora espalhar medo com promessas de violência. Quem diria que alguém tão forte nas redes sociais poderia ser tão impotente na realidade. As ameaças vazias são uma tentativa patética de compensar a sua irrelevância e insegurança.

A mentira é a ferramenta predileta para manipular a realidade. Dissemina “fake news” e teorias espúrias com a mesma facilidade com que respira. Afinal, quem precisa de factos quando se pode criar uma narrativa completamente distorcida para apoiar os seus argumentos. A ignorância política é apenas um detalhe, facilmente camuflado pela quantidade de idiotices que consegue escrever por minuto.

E claro, o herói do teclado tem uma habilidade única e sobrenatural: sabe sempre, exatamente, o que os outros pensam, melhor do que os próprios. Não importa quão claro e directo seja o seu ponto de vista, este boçal consegue reinterpretar as palavras dos outros de modo a encaixá-las na sua narrativa distorcida. Se dizemos que gostamos de maçãs, prontamente temos como resposta que, na verdade, odiamos pêras e aproveita logo para promover a hegemonia das frutas vermelhas. É um dom admirável, ou pelo menos ele gosta de pensar que sim.

Não podemos esquecer um ponto fundamental: o herói do teclado adora declarar, com enorme dramatismo, que até apoiava o interlocutor, que inclusive votou nele e tudo, mas que daqui para a frente nunca mais contem consigo. É uma cartada emocional que usa para tentar desestabilizar e deslegitimar a pessoa que critica. Afinal, nada como um traidor ressentido para adicionar um toque teatral ao seu espetáculo de indignação.

Mas a cereja no topo do bolo é a hipocrisia. O herói do teclado não aguenta receber nem metade do que distribui. Quando alguém ousa desafiá-lo ou retrucar os seus ataques, rapidamente se transforma em vítima. Pobrezinho, tão incompreendido e injustiçado. Um espetáculo digno de pena, se não fosse tão patético.

No fundo, o herói do teclado é um produto da própria insignificância. Busca desesperadamente por validação e atenção, escondendo as suas fragilidades atrás de um perfil “online”. Para enfrentá-lo, precisamos promover mais educação digital e menos tolerância para com estes comportamentos tóxicos. Quem sabe um dia estes entes possam sair do casulo virtual e se transformar em alguém de valor.