A comédia da Rua dos Netos

De há muito que se esperava que mais dia menos dia surgisse finalmente na vida cultural madeirense um texto brilhante que indiciará que uma excelente comédia vai ser representada no salão paroquial da estreita Rua dos Netos.

Espera-se enorme afluência de espetadores trajados a rigor como se duma tourada não à portuguesas mas sim à madeirense se trate, e ali acorrerão certamente tal como nos versos do inesquecível poeta Ary dos Santos os mais diversos cromos do salão paroquial da dita rua dos netos.

O guião (que excelente filme dava…) vai pôr em cena dois atores, um no papel de Caim e outro no de Abel.

Não faltarão histórias de muitas noites de facas longas, nem decerto ali se ocultarão cenas de facadas em muitas costas, deixando em muito mau estado os casacos saídos das mãos dos mais finos e melhores mestres alfaiates cá da praça.

Na Comédia da Rua dos Netos ir-se-à falar certamente de personagens que ainda são o que já não deveriam ser, e como não podia faltar no texto, existirão cenas que porão a nu dois pistoleiros, armados não de carabinas mas sim de metralhadoras, cada um dentro de trincheiras e rodeados pelos seus melhores amigos em número de quase cinquenta por cento para cada lado.

Não sei se do salão paroquial será arrastado para a cena não um mas dois bustos do inesquecível patrono para proteger Caim e Abel, patrono aquele que pouco tempo teve de gozo de democracia, e que, se voltasse, coraria de vergonha pelo que dizem e fazem em seu nome. Falo daquele inventou a maravilha dos dois dedinhos em sinal de vitória, que perdeu mais tempo nos braços do cupido do que a governar, e que, tal como D. Sebastião, o que se perdeu no meio do nevoeiro e deixou saudades, também aquele um dia partiu para nunca mais voltar. Deixou em profundo luto muitos e muitos que até nem o chegaram a conhecer, deixou muitos e muitos tolhidos por arrepiante orfandade que irá durar talvez para sempre, tal como acontece ainda com o prestigiado médico alhandrense Sousa Martins, apelidado de senhor dos milagres.

Não sei quando será a estreia da dita Comédia da Rua dos Netos. Apenas fico arrepiado com a impressão de que algum crime vai acontecer naquela rua, e deixo a sugestão se me permitem quer atores, quer encenadores, coreógrafos e cenaristas: que peçam àquela que passa a vida a Procurar não se sabe o quê, que aquando o final apoteótico que acredito virá a acontecer, que reenvie os mesmos aviões para de novo sobrevoarem o local da representação, pois tenho a certeza que houve algo que por aqui ficou muito, mesmo muito, incompleto.

Comprem já o libreto do espetáculo, convidem-se as altas figuras da paróquia como é sempre habitual, e não se esqueçam que não é todos os dias que vai à cena uma tal comédia ( ou telenovela mexicana ?) a Comédia da Rua dos Netos que bem podia chamar-se a tragédia de um homem só!

Jorge Gomes