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Crónicas

Como nada é como antes, nem a bola

E, por isso, nesse sábado, véspera de São João e dia de jogo de Portugal, também se jogava o orgulho nacional, o nosso também

Véspera de São João, dia de crismas no Laranjal e da meia final do Europeu. O ano é o de 1984, agora tão longe como tudo o que fazia a nossa vida: a inflação a 20%, os salários em atraso, as permanentes no cabelo e os autocarros velhos, com portas que não abriam e outras que não fechavam.

Foi esse Laranjal que se sentou à frente da televisão - e nem todas eram a cores - para sonhar com uma vitória de Portugal. O sonho ia aliviar as canseiras e mostrar a essa gente que vinha de férias e exibia a riqueza que a fibra de um povo não vinha do dinheiro.

No Laranjal todos sabiam que não, que o dinheiro ajudava, mas para viver por ali, entre becos e veredas, para subir e descer degraus e enfrentar a falta de água e os cortes na electricidade a meio do episódio da novela eram necessários outros recursos como a paciência. E um plano B a como ir buscar água à fonte ou ter umas velas para não ficar às escuras.

E, por isso, nesse sábado, véspera de São João e dia de jogo de Portugal, também se jogava o orgulho nacional, o nosso também. Afinal, aquilo que se avistava do mar até a serra, era português, mesmo que, por causa do sotaque, se trocasse os ‘l’ quando se berrava no pátio da escola por um Filhipe e uma Filhapa.

Na paróquia havia crismas. O bispo fazia a cruz com óleo nas testas daqueles rapazes e raparigas, todos enfiados em roupas novas que o compromisso de confirmar a fé católica exigia brio e respeito. E eu estava lá, com eles, metida num vestido branco com as flores azuis e o cabelo aos caracóis. O penteado era da minha tia Conceição, a tia Teresa foi a madrinha e por isso levava um relógio novo e um anel de ouro.

O jantar foi a seguir, com galinha no forno, pudim de laranja e as pessoas que eram tudo para mim. As tias e os primos, o meu tio Humberto que me levou à igreja por gostar muito de mim, mas só apareceu na festa depois, que era melhor ver o jogo a cores e as minhas tias só tinham uma televisão a preto e branco. E foi nessa velha televisão que vi a minha festa do crisma passar do melhor para o pior, para acabar com o meu pai a dizer que os franceses nunca nos iam deixar ganhar.

E Portugal perdeu, que o dinheiro faz sempre diferença e porque a sorte e a falta de organização nos tramou nesse jogo louco, de 3-2 para a França do Platini. O meu tio Humberto, que gostava de bola de uma maneira tão elegante e digna, sabia que a França era a França e era mais equipa. Morreu velhinho, aos 83 e antes de ver o seu Portugal vingar aquela véspera de São João de 1984.

Todas as vezes que Portugal joga penso nele, naquele homem bom sentado na cadeira e a seguir com os pés os toques da bola no ecrã. E todas vitórias são dele também, serão sempre dele, a pessoa que amava o futebol como uma arte.