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A Guerra Mundo

Líder do Grupo Wagner desafiou o Kremlin há um ano e Putin ficou mais forte

Foto NATALIA KOLESNIKOVA / AFP / AFP PICTURES OF THE YEAR 2023
Foto NATALIA KOLESNIKOVA / AFP / AFP PICTURES OF THE YEAR 2023

Um ano após os mercenários do Grupo Wagner tomarem a cidade de Rostov e encetarem a "marcha da justiça" para Moscovo, o Presidente russo, Vladimir Putin, consolidou a sua liderança e os seus opositores desapareceram um atrás do outro.

Nesta lista conta-se Yevgeny Prigozhin, um ex-condenado por roubo e furto que fundou o Grupo Wagner sob a proteção de Putin, mas que, em 23 de junho de 2023, protagonizou uma rebelião contra a hierarquia militar de Moscovo, no maior desafio ao líder do Kremlin desde que ascendeu ao poder em 2000.

Em Prigozhin acabava de recair a glória de Bahkmut, no leste da Ucrânia, numa das mais longas e sangrentas batalhas da invasão russa, iniciada em fevereiro de 2022, e também a sua principal vitória em mais de um ano de ganhos residuais.

A par do sucesso, o líder do grupo mercenário dirigia críticas abertas e reiteradas ao então ministro da Defesa, Sergei Shoigu, e ao chefe do Estado-Maior, Valery Gerasimov, de incompetência e incapacidade em lidar com a corrupção.

Após a rendição dos mercenários por forças regulares russas, Prigozhin acusou Shoigu de ordenar um ataque contra acampamentos Wagner em Bakhumt, provocando "um número muito grande de vítimas", o que foi negado pelo Ministério da Defesa, mas que acendeu o rastilho para os acontecimentos seguintes.

Entre 23 e 24 de junho, Prigozhin reivindicou o controlo de Rostov do Don, no sul da Rússia, "sem disparar um único tiro", incluindo o quartel-general e a base de onde descolavam aviões de combate para atacar a Ucrânia, enquanto habitantes nas ruas saudavam os revoltosos e gritavam o nome "Wagner".

Prigozhin justificou que a concentração de 25 mil homens em Rostov era um ato de sobrevivência do seu exército privado, que, no dia 24, iniciou uma "marcha da justiça" para Moscovo, deixando claro que o objetivo não era Putin mas depor as chefias militares.

As colunas do grupo armado percorreram mais de 700 quilómetros praticamente sem resistência, reclamando apenas o abate de um helicóptero que supostamente disparou contra os mercenários, mas acabaram por se deter quando se aproximavam da capital.

Nessa altura, já vigoravam em Moscovo medidas antiterroristas e postos de controlo militar esperavam os mercenários, numa cidade em alerta total, em que os habitantes foram aconselhados a ficar em casa, combatentes leais ao líder checheno, Ramzan Kadyrov, recebiam ordens para "defender a soberania da Rússia" e o patriarca ortodoxo Cirilo apelava para se rezar por Putin.

Embora não fosse o visado, o líder do Kremlin não mostrava condescendência em relação ao oligarca que ajudou a promover após os primeiros negócios de sucesso com uma cadeia de cachorros-quentes, seguindo-se outros de 'catering' e restaurantes de luxo, onde servia pessoalmente Putin, até criar um dos grupos de mercenários mais temidos do mundo, defendendo os interesses de Moscovo em África, na Síria e na Ucrânia, e deixando um rasto de sucessivas acusações de crimes de guerra.

Enfrentando uma humilhação interna e palavras de descrédito de potências ocidentais, que ao mesmo tempo asseguravam nada ter a ver com as intenções de Prigozhin, Putin tratou a revolta como uma traição que urgia anular para evitar uma guerra civil.

Num discurso à nação no dia 24, o chefe de Estado atribuiu a revolta a "ambições desmesuradas" e "interesses pessoais" e que os seus autores poderiam esperar ações "muito duras".

O chefe dos mercenários acabou por parar a "marcha da justiça", argumentando que pretendia evitar "o derramamento de sangue", numa decisão negociada pelo Presidente bielorrusso, em socorro do seu aliado no Kremlin.

Em troca do fim do motim, Alexander Lukashenko ofereceu a Prigozhin o seu país para acolher os mercenários, a quem também era dada a opção de integração nas forças regulares, além da interrupção das ações iniciadas na justiça por rebelião armada.

Num sinal de aparente reaproximação, Putin recebeu Prigozhin e vários dos seus comandantes em 10 de julho. Segundo o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, ao fim de três horas, os mercenários "sublinharam que eram apoiantes e soldados convictos do chefe de Estado e do comandante-chefe".

Nessa altura a imprensa ocidental dava conta da detenção de vários oficiais e de outros que desapareceram do espaço público por bastante tempo, incluindo o general Sergei Surovikin, ex-comandante das forças de Moscovo na Ucrânia, e que estava alegadamente a par dos planos de rebelião, ainda que, naquele dia, tenha feito um apelo desesperado aos combatentes "do mesmo sangue" para pararem.

Prigozhin reapareceu pela última vez em 21 de agosto num vídeo supostamente gravado algures no continente africano, afirmando que "o Grupo Wagner faz com que África seja ainda mais livre" e assegurando que só voltaria à Ucrânia "quando a pátria o pedir". Dois dias depois, morreu aos 62 anos.

Passavam exatamente dois meses sobre a rebelião quando o jato privado que transportava Prigozhin e vários líderes do Grupo Wagner, incluindo o cofundador Dmitri Outkin, caiu entre Moscovo e São Petersburgo, matando todos os dez ocupantes.

Com todos os olhos sobre si, Putin disse que o avião não fora abatido e que fragmentos de granadas foram encontrados nos corpos dos ocupantes, além de sugerir que eles próprios eram a causa do desastre ao consumirem drogas e álcool.

"Nada disso era verdade", segundo o diário norte-americano Wall Street Journal, que, em 22 de dezembro, publicou uma investigação a dar conta de que o avião fora derrubado no seguimento de um plano desenhado por Nikolai Patrushev, um ex-espião íntimo do Presidente russo.

De acordo com a investigação intitulada "Como o braço direito de Putin eliminou Prigozhin", que ouviu elementos de "secretas" e agentes no ativo e retirados nos Estados Unidos, na Europa e na Rússia, a estratégia seria deixar o empresário numa aparente liberdade, enquanto se reunia mais informações sobre os seus colaboradores no motim e no Grupo Wagner, antes de o eliminar. "Putin viu os planos e não se opôs", escreveu o jornal.

Desde a morte de Prigozhin, segundo relatórios de várias organizações de direitos humanos, o líder do Kremlin reforçou a repressão contra opositores e críticos da guerra na Ucrânia, subjugou o poder judiciário, reduziu o espaço de ação da sociedade civil e da imprensa independente, encaminhando as vozes dissidentes para o exílio, para a prisão ou para o desaparecimento.

O caso mais destacado foi o líder da oposição Alexei Navalny, que apareceu morto em meados de fevereiro aos 47 anos na cadeia onde estava preso no Ártico, e, tal como com Prigozhin, o Kremlin voltou a surgir como o principal suspeito, apesar de contundentes desmentidos.

Em 15 de março, Putin foi reeleito por uma maioria esmagadora para um quinto mandato até 2030, face a uma concorrência fantoche, reforçando a sua narrativa de guerra e alargando o seu espaço político cada vez menos desafiado, entre a reputação de que o Kremlin não paga a traidores.

Quanto aos mercenários, os serviços de informação britânicos indicaram em fevereiro que a Guarda Nacional iniciara a incorporação de três "destacamentos de assalto" do Grupo Wagner no seu corpo de voluntários, do qual uma parte seria mobilizada para a Ucrânia e outra para África, onde países como o Mali, Níger e Burkina Faso mantêm colaboração militar de Moscovo, que deste modo vai consolidando a influência no continente.

Na hora da sua morte, Putin descreveu Prigozhin como "um homem talentoso que fez muito pela Rússia, mas que cometeu erros", tolerando que lhe erguessem uma estátua em bronze junto do seu túmulo em São Petersburgo, que foi inaugurada em 01 de junho, poucos dias após a substituição de Sergei Shoigu no Ministério da Defesa e da detenção de altas patentes militares por corrupção.