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Crónicas

Às vezes é preciso que nos digam que podemos sonhar

A minha mãe reservou então todas as esperanças para mim

A minha mãe tinha um plano e, por isso, passou a minha adolescência a explicar que, na vida, havia duas profissões para uma mulher: ou professora ou médica. O resto parecia-lhe um investimento de risco para as nossas finanças, sempre suspensas pelas ampliações em casa e a incerteza do meu pai encontrar trabalho numa obra. Ela tinha os bordados e trabalhava todos os dias, de manhã à noite, mas aquilo nunca ia chegar para pagar todas as nossas contas. A dona Celina e o mestre Gabriel queriam muito filhos com estudos, que soubessem falar e preencher papéis, cidadãos de quem se pudessem orgulhar.

O sonho era dos dois, gente das zonas altas da cidade, com pouca instrução e a quem as circunstâncias tinham tirado quase tudo menos a capacidade de sonhar. A minha mãe e o meu pai juntavam dinheiro apenas para a casa e para nós, os filhos, a menina e o menino que a vida lhes tinha trazido, mas não estavam preparados para as possibilidades que o 25 de Abril tinha libertado, para as ideias que começaram a despertar na cabeça das pessoas. E também não esperavam que esse vento moderno viesse dar logo ali, naquela casa como as outras.

O primeiro a fugir da regra foi o meu irmão que, sem que ninguém conseguisse perceber como, começara a escrever poemas e textos como se a sua existência dependesse das palavras que nasciam umas atrás das outras em cadernos e folhas. Aquele rapaz, que fumava às escondidas e nunca quisera ser nada, não demorou muito a declarar que se fosse alguma coisa seria escritor de livros e romances. A minha mãe não sabia bem o que era ser escritor, nem como se fazia um, mas comprou-lhe uma máquina de escrever portátil e não se opôs a que tirasse um curso de dactilografia (era uma coisa que se fazia muito nos anos 80). Se não fosse autor de livros, talvez pudesse trabalhar num escritório.

A minha mãe reservou então todas as esperanças para mim, a filha a quem via já num hospital ou à frente de uma turma a ensinar a ler e a contar. Quando acabei o 9.º ano e decidi que, afinal, gostava mais de História e Português do que de Matemática e Biologia deixou de me falar durante uma semana. Eu não escrevia poemas, nem histórias como o meu irmão, mas queria empenhar-me no que gostava mesmo para ter as melhores notas possíveis. No fim da história estava a universidade, mas precisei de ganhar coragem para declarar que era isso que queria e ia fazer. Só não ia ser professora, nem médica, ia para jornalista.

O meu pai ficou confuso, acho que não lhe tinha ocorrido que os filhos pudessem ser isso, jornalistas e talvez não fosse simples explicar aos amigos, às pessoas com quem trabalhava nas obras, mas o mais importante é que não desistiu de nós. Todos os dias da semana - às vezes também ao fim de semana - levantava-se cedo e seguia na furgoneta com o almoço dentro de uma bolsa e a roupa do trabalho noutra. Se nós íamos ser isso, pessoas que viviam de escrever, não seria por ele que o plano iria falhar. E deve ter resistido a todos os preconceitos, aos descrentes, aos que achavam que filhos com estudos esquecem os pais analfabetos.

Os dois, a dona Celina e o mestre Gabriel, pessoas normais e sem grande instrução, acabaram por encontrar maneira de se orgulhar de nós. A minha mãe guardava todos os jornais onde apareciam os nossos nomes e ria-se com as reportagens do meu irmão, o filho que um dia ia publicar um livro. Era a nossa primeira leitora, a mais crítica também e, tal como o meu pai, parte da sua riqueza estava debaixo do móvel velho da televisão, naquele monte de jornais velhos com os nossos nomes.