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A deceção

As aparências e o descartável prevalecem sobre os valores profundos e duradouros. Confunde-se o virtual com o real e faz-se disso a Verdade: a única possível

“A Sociedade da Deceção” é um livro de Gilles Lipovetsky e trata não tanto da sociedade, mas do conceito de deceção. Refere-se a uma “fé inabalável no caminho irreversível e contínuo para uma idade de ouro prometida pela dinâmica da ciência e técnica, da razão ou da revolução” (p.31).

O filósofo faz uma análise crítica das dinâmicas sociais e culturais contemporâneas, onde a busca incessante pelo prazer e pela satisfação imediata parece dominar. Não sei se vivemos numa era marcada pela superficialidade onde tudo é transitório, se pelo espetáculo circense ou se pela comédia barata. Mas é mais ou menos evidente que o consumo do pensamento fácil se tornou uma ferramenta central de controle social, em particular, por uma espécie de liderança política.

As aparências e o descartável prevalecem sobre os valores profundos e duradouros. Confunde-se o virtual com o real e faz-se disso a Verdade: a única possível. Já não se assumem as responsabilidades e procura-se infetar, a uma velocidade estonteante, a Esperança.

Vivendo da negação e alienação profundas, sente-se este contágio (ou pelo menos a sua tentativa) por parte de indivíduos que se distanciam de suas próprias vidas e experiências e não conseguem sequer ler os números: derrotas validadas. É o desespero por manter um espetáculo que serve para manter a ordem existente, distraindo e desorientando os que nele acreditam, impedindo a formação de uma consciência crítica e coletiva.

Repara: depois de tanto fracasso ainda achas que não precisas de todos?

Num momento em que tanto se aspira ao diálogo, resta-nos uma turba que enjeita e se esconde no seu próprio insucesso. Os “vencidos são os outros”, ainda que o povo tenha sido claro sobre quem recusa. A deceção tornou-se uma constante.

As promessas oferecidas num rol de mercearia e a sua realização raramente são cumpridas, precisamente porque as expectativas já nem são geradas. Servem para um entretenimento permanente, entre risos e zombarias, que consolida uma cultura de futilidade que afeta as nossas relações com o mundo. A mediocridade vive disso: de solidão exposta e de inveja escondida. Quando se der conta terá um ou dois com quem se distrair.

Mas a inveja é muito mais profunda. Não se trata de querer ter o que o outro tem. Trata-se de não querer que o outro tenha.

É a deceção no seu auge.