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Crónicas

Ter estudos

Havia uns quantos ricos, muitos pobres e uma multidão que não era nem uma coisa, nem outra a quem a minha mãe dava o nome de ‘remediados’

As pessoas dividiam-se em várias categorias e o bom desta escala social é que, no Laranjal, cada um sabia onde estava. Havia uns quantos ricos, muitos pobres e uma multidão que não era nem uma coisa, nem outra a quem a minha mãe dava o nome de ‘remediados’. Os remediados não tinham muito dinheiro, mas estavam num lugar onde lhes era permitido sonhar com um carro velho ou com uma viagem a Canárias para apanhar sol e trazer a mala cheia de tudo o que não existia nas lojas da cidade.

O plano mais ambicioso foi o que se meteu na cabeça de todos os que, nos anos a seguir à revolução, fizeram fila para matricular os filhos no ensino preparatório e deixaram de se contentar com a telescola. A minha mãe esteve entre essas senhoras que foram para as filas que, nesse tempo, pareciam nascer em todos os lados: era preciso esperar para comprar os selos fiscais, para entregar a matrícula e, antes disso, também se fazia fila no Campo da Barca para ficar com a vacina BCG em dia.

A minha mãe andava abaixo e acima, de autocarro para autocarro e socorria-se da minha tia Teresa ou da minha prima Ana que, às vezes, ficavam a guardar lugar, enquanto vinha a casa fazer o almoço, alimentar os cães e as galinhas. Ou íamos nós para aprender que, nas famílias dos remediados, a prole ganhava autonomia cedo para aliviar a carga de trabalho dos adultos. Aos sete anos íamos à venda; aos 10 estávamos por nossa conta no autocarro para a escola e, aos 15 tínhamos a obrigação de tratar dos papéis, das fotografias e até íamos renovar o bilhete de identidade sozinhos.

Ter estudos não era só passar de ano e tirar boas notas, era tornar-se independente depressa e saber mais do que o pai e a mãe, as tias e os tios, ser tudo os que eles não podiam ser. Falar línguas, preencher formulários e perceber o que diziam os funcionários dos serviços públicos quando se ia resolver burocracias. O primeiro treino era tratar com os senhores e senhoras da secretaria fosse para pagar o passe ou tratar da segunda via do cartão da escola.

Se íamos à sessão das quatro e meia no Cine Casino e ao Lido sem supervisão bem podíamos tratar dos assuntos que nos diziam respeito. Eu lembro-me de andar pela Rua Fernão Ornelas a tentar descobrir um fotógrafo mais barato de maneira a ficar com o troco para beber uma Pepsi com limão e gelo na Marina. E gerir os trocos que nos caíam no bolso também era parte do treino. Pelo menos da minha mãe que, mesmo quando nos parecia distraída, sabia de tudo, até do dinheiro que havia a mais na nossa carteira de tecido e velcro.

No fim, depois de termos feito tudo, era a dona Celina quem assinava com a sua letra inclinada e bonita por cima dos selos fiscais e encerrava a história da matrícula. Um dia, com todos aqueles estudos, seríamos de facto as pessoas independentes que ela sonhara anos antes quando foi para as filas perguntar como se fazia para mandar os filhos para a escola.